Entrevista com a Organização Socialista Libertária (OSL) do Brasil feita pelo Embat, Organização Libertária da Catalunha – Parte I

“ESTAMOS CONTRIBUINDO PARA CONSTRUIR UMA ALTERNATIVA SOCIALISTA E LIBERTÁRIA PARA O BRASIL”

Entrevista com a Organização Socialista Libertária (OSL) do Brasil feita pelo Embat, Organização Libertária da Catalunha

PARTE 1: A OSL E SUA CONCEPÇÃO DE ANARQUISMO

Qual é a origem da OSL?

Nossa organização, apesar de nova, é herdeira de uma experiência que remete ao início do anarquismo especifista no Brasil (meados dos anos 1990). Inclusive, o nome que escolhemos é uma referência à antiga OSL, que, entre 1997 e 2000, constituiu a primeira tentativa de conformar uma organização anarquista especifista de abrangência nacional. A antiga OSL teve seus limites e acabou não conseguindo ir adiante. Ao final do processo, sua militância acabou percebendo que, naquele momento, investir em uma organização nacional era “começar a construir a casa pelo telhado”. Ela decidiu dar alguns passos atrás e reorientar o processo.

Por um lado, fortalecer os trabalhos de base, a construção e a participação em movimentos populares e lutas sociais – o que foi feito com a fundação de diferentes Resistência Popular – agrupamentos de tendência (organizações “intermediárias” entre a organização política e os movimentos de massas), que tinham por objetivo reunir setores libertários de trabalhadores e ter uma incidência nesses movimentos e lutas. Por outro lado, retomar a discussão em nível ideológico, anarquista, criando um caldo organizativo que pudesse apontar, no médio prazo, para essa organização anarquista nacional. Para isso, foi criado em 2002 o Fórum do Anarquismo Organizado (FAO), que pretendia unir anarquistas que concordassem com dois eixos prioritários: a necessidade de organização dos anarquistas e a necessidade de trabalho social (de base, de massas). 

Esse processo permitiu o desenvolvimento do anarquismo especifista no Brasil. Houve coletivos e organizações que se mantiveram no processo, outros/as que surgiram e/ou que se agregaram a ele; mas houve também aqueles/as que se desarticularam ou romperam. Contudo, de modo geral, em especial a partir de 2008/9, o FAO se estabeleceu e conseguiu se desenvolver significativamente, consolidando uma série de iniciativas organizacionais em diferentes estados do Brasil. Isso permitiu avanços consideráveis, que culminaram na fundação da Coordenação Anarquista Brasileira (CAB), em 2012.

A ideia de articular uma coordenação foi exatamente dar um passo organizativo e transformar o antigo fórum (espaço de trocas de informes, experiências etc.) em algo com um pouco mais de organicidade e alinhamento. A coordenação era exatamente esse meio termo entre o fórum e a organização política. Participamos ativamente de desse processo nos 10 anos em que estivemos na CAB; com ele, conseguimos avançar em alguns alinhamentos iniciais em termos de teoria e prática.

A OSL nasce em julho de 2023, a partir de uma fusão entre a Federação Anarquista do Rio de Janeiro (FARJ, estado do Rio de Janeiro), o Coletivo Mineiro Popular Anarquista (COMPA, estado de Minas Gerais), a Rusga Libertaria (RL, estado do Mato Grosso), a Organização Anarquista Socialismo Libertário (OASL, estado de São Paulo), além de indivíduos de diferentes regiões do Brasil. A OSL se conformou com um setor com mais ou menos a metade da militância da CAB, que se desvinculou dela por entender que a coordenação havia cumprido seu papel e que era necessário dar mais um passo adiante.

Mas por que se forma esta nova organização comunista libertária especifista?

Em nossa avaliação, o processo de crescimento que acabamos adotando no Brasil (baseado na constituição e na articulação de “grupos orgânicos”, conforme recomendava o processo da Construção Anarquista Brasileira, desde os anos 1990), se teve a virtude de fazer avançar o anarquismo organizado geograficamente para diferentes regiões e agregar muitas pessoas, por outro lado acabou mostrando certos limites.

Esse crescimento, que se deu no contexto do FAO e da CAB, ocorreu de maneira um tanto desordenada, e permitiu que se agregassem coletivos e organizações que, para além da concordância com os princípios anarquistas e especifistas, tinham muitas diferenças. Ele terminou estimulando certa autonomia local/regional dos organismos estaduais, tornando cada vez mais complicado alinhar e homogeneizar as posições teóricas e estratégicas, e avançar para estruturas e linhas unitárias. É óbvio que a conjuntura teve certa influência nesse processo, assim como o desenvolvimento desigual que ocorreu nas distintas regiões. Mas em nossa avaliação não foi esse o cerne da questão.

No contexto das discussões para a construção de nossa organização nacional (que sempre foi o objetivo do FAO e da CAB) e dos conflitos internos que se produziram em torno delas, foi se tornando claro para nós, especialmente a partir de 2019, que havia um cenário complicado em nossa coordenação. Por um lado, concepções muito distintas de linha política (anarquismo, especifismo, teoria) e de linha estratégica-tática (programa, prática política). Por outro, todo um setor com pouco interesse/intenção em avançar na homogeneização e na unificação, imprescindíveis para a formação de uma organização política. Além disso, mesmo em setores que defendiam esse avanço, havia não raro posições muito heterogêneas. 

Ficou claro para nós que os caminhos que tínhamos eram os seguintes. 1.) Manter a CAB no estágio em que se encontrava, sem avançar para uma organização nacional; solução que, depois de 10 anos de CAB, não nos parecia acertada. 2.) Insistir nesse processo de homogeneização e unificação, fazendo a disputa interna na CAB; o que, em nossa leitura, elevaria muito o nível dos conflitos, que já estava alto, e certamente não atrairia certos setores. 3.) Propor o encerramento da CAB e colocar nossa proposta organizativa; assim, a militância e os organismos estaduais que concordassem poderiam se somar a nós, e os que não concordassem ficariam livres para construir outros projetos.

Optamos por esse último caminho porque não julgamos acertado permanecer naquele estado organizativo e nem investir em uma disputa interna que, conforme avaliamos, levaria alguns anos para se resolver, faria com que tivéssemos que nos voltar para dentro e intensificaria muito o nível interno de conflito (certamente haveria desgastes, cisões, expulsões etc.). Tudo isso, a nosso ver, seria muito ruim para nossa militância e nossos trabalhos sociais (sindical, comunitário, agrário etc.) Também contribuiu para essa opção o fato de nossa regional da CAB (Sudeste – Centro Oeste) estar, desde 2021, funcionando como uma organização. Estávamos unificando processos, instâncias, linhas etc. E víamos, na prática, como isso não só fazia avançar o processo, mas facilitava o cotidiano organizativo. Ou seja, era não só possível como vantajoso e desejável investir nessa passagem de coordenação a organização.

Com a discordância da maior parte dos organismos estaduais da CAB em seguir o caminho proposto por nós, deliberamos romper em 2022. Saímos FARJ, COMPA, RL, OASL e, tentando manter uma relação pública de respeito com a CAB, iniciamos a construção da nova organização, que tem sido articulada em diferentes sessões de nosso primeiro congresso (CONOSL). Em termos muito gerais, além de fundar a OSL, temos alinhado nossa organicidade, nossas linhas e proporcionado condições para a nacionalização (presença em todas as regiões do Brasil).

Nossos núcleos e regiões vêm operando numa estrutura nacional única com a mesma organicidade e avançado para uma unidade ideológica, teórica, estratégica e tática. Temos partido de referências clássicas do anarquismo que estão na base do dualismo organizacional (do qual o especifismo e o plataformismo são expressões históricas) e tentado aprofundar e atualizar nossas concepções. Estamos começando a desenvolver mais significativamente as análises estruturais e conjunturais, nosso programa máximo e mínimo, além de outros elementos. Já começamos nossa expansão para a região norte-nordeste e para o sul do país.

Estamos muito animados com esse novo momento organizativo e com os avanços que, apesar de modestos, nos parecem muito consistentes, ainda mais se levarmos em conta que a OSL só existe há um ano. Também estamos bastante motivados com outros aspectos relevantes, como o ótimo clima interno e o crescimento de nossos trabalhos sociais, dos quais falaremos adiante. Sem dúvida, temos a certeza que estamos contribuindo para construir uma alternativa socialista e libertária para o Brasil.

Para as pessoas que não estão inteiradas, o que é o especifismo para vocês?

O especifismo é uma expressão histórica do dualismo organizacional anarquista. Entendemos que, desde seu surgimento no fim dos anos 1860, o anarquismo desenvolveu essa forma organizativa, o dualismo organizacional. Trata-se exatamente daquilo que foi defendido por Mikhail Bakunin e que fundamentou a Aliança, primeira organização anarquista da história. Ao longo dos anos, militantes e organizações anarquistas defenderam essa forma organizativa, baseada na necessidade de organização concomitante dos anarquistas em dois níveis: um político-ideológico, anarquista, e outro social, popular, de massas.

Em sua versão homogênea e programática de organização específica anarquista, essa tradição foi defendida por alguns clássicos. Ela teve na Aliança (ou no “aliancismo”) a sua origem, e contou com duas expressões históricas mais relevantes. Uma delas, inspirada pela “Plataforma Organizacional da União Geral dos Anarquistas”, escrita pelo grupo Dielo Truda, que se convencionou chamar de “plataformismo”, cujo impacto se fez sentir, entre os anos 1920 e 1950, principalmente na Bulgária, na França e na Itália, e que, entre os anos 1980 e 1990, se difundiu para países como África do Sul e Irlanda. Outra dessas expressões, na qual a Federação Anarquista Uruguaia (FAU) teve protagonismo, que se convencionou chamar de “especifismo”, cujo impacto se fez sentir não apenas do Uruguai dos anos 1960 e 1970, mas em outros países da América do Sul, como Brasil, Chile e Argentina, especialmente dos anos 1990 em diante. 

O termo “especifismo” e suas variações eram utilizados historicamente no Uruguai e em outros países para se referir aos anarquistas que defendiam a necessidade de uma organização específica anarquista. O que a FAU fez foi dar um sentido mais preciso a este termo, a partir de suas concepções práticas e teóricas. Tal linha foi retomada em sua rearticulação, em meados dos anos 1980. A FAU chegou a essa concepção baseada em referências como Bakunin, Errico Malatesta, sindicalistas revolucionários e anarquistas expropriadores, juntamente com uma reflexão sobre o imperialismo na América Latina estimulada, dentre outros, por Abraham Guillén.  

A OSL reivindica esse dualismo organizacional homogêneo e programático, de organizações que possuem unidade de posições teóricas, ideológicas, estratégicas e táticas. Nossas principais referências são o especifismo e o plataformismo – os quais entendemos como herdeiros legítimos do aliancismo. Possuímos também uma referência no sindicalismo revolucionário, em termos de estratégia de massas, pois identificamos semelhanças entre ele e nossa proposta para organizar as classes oprimidas e construir um projeto libertário de poder popular. Assim, nos diferenciamos das posições anarquistas antiorganizacionistas, anarcossindicalistas (que em geral fundem organização anarquista e organização de massas) e das formas mais heterogêneas de organização específica anarquista, como o sintetismo (que se caracterizam pela pluralidade de posições políticas e programáticas).

Podemos explicar um pouco melhor essas posições. Defendemos uma concepção de anarquismo de massas, tendo como estratégia o sindicalismo revolucionário, que se baseia na construção e no fortalecimento de movimentos populares a partir de uma linha clara de atuação. Mas defendemos ao mesmo tempo a necessidade de uma organização especificamente anarquista, que se baseia na construção de uma estratégia e de um programa unitário para intervenção na realidade. Para nós, é apenas por meio de uma organização que os anarquistas podem potencializar sua força de intervenção na realidade e se fortalecer nas disputas com outras correntes políticas e ideológicas. Nisso consiste o dualismo organizacional que pauta nossa organização, que está muito distante das concepções libertárias individualistas, primitivistas, insurrecionalistas ou pós-anarquistas.

Concebemos a organização anarquista como um partido fundamentado em alguns princípios organizativos: a autogestão e o federalismo; a unidade teórica e ideológica; a unidade estratégica e tática; a responsabilidade e a disciplina coletiva. Trata-se, obviamente, de um partido que, justamente por ser anarquista, não disputa o poder de Estado e nem possui traços autoritários.

Para nós, o papel da organização específica anarquista é: 1.) Articular a militância anarquista, evitando a dispersão de forças, pois sozinhos não somos capazes de disputar contra outras correntes e organizações e nem de influenciar os movimentos populares com os princípios libertários. 2.) Promover constantemente a luta de classes e uma perspectiva revolucionária, pois acreditamos que os sindicatos e os movimentos sociais não caminham espontaneamente nessa direção. A organização anarquista é necessária para fortalecer e radicalizar e essas lutas, bem como para defender e propagar nosso programa entre as classes oprimidas. 3.) Acumular experiências das classes oprimidas, pois observamos que em várias ocasiões há perdas de acúmulo dos movimentos e lutas, especialmente nos períodos de refluxo; e a organização anarquista pode garantir que esse acúmulo seja preservado e repassado adiante. 4.) Construir um projeto autogestionário de poder popular, de baixo para cima e da periferia para o centro, unificando os diferentes setores (movimentos, lutas etc.) das classes oprimidas, a partir de uma estrutura e de uma relação libertária e complementar com os movimentos e as massas. 5.) Produzir teoria, de modo que sejamos capazes de interpretar adequadamente nosso passado e nosso presente e produzir um programa capaz de fazer avançar nosso projeto político. Para isso, temos avançado no desenvolvimento de um método de análise que chamamos de materialismo ou realismo libertário, bem como em uma teoria social libertária própria. Parte dessas noções está em um documento de nossa organização intitulado “Nossos Princípios e Estratégia Geral”.

O que o diferencia esse especifismo/plataformismo de outras correntes do socialismo?

Nosso socialismo é libertário e, por isso, se diferencia das correntes autoritárias, que pretendem conquistar o Estado (via eleições, reformas ou revolução) e que acabam por dar continuidade à dominação das classes oprimidas (seja pela burocracia, pelas “alianças estratégicas” com burguesia etc.). Nosso socialismo é revolucionário e, por isso, se diferencia das correntes reformistas, que consideram as reformas no capitalismo-estatismo como um fim em si ou que acreditam que é possível chegar ao socialismo por um conjunto cumulativo de reformas restritas.

Nosso socialismo também é profundamente classista e internacionalista. De modo que ele se diferencia das concepções que afirmam não ser mais possível falar em classes sociais ou sustentar uma perspectiva baseada na luta de classes; também se diferencia daquelas posições que afirmam a classe como “apenas mais uma opressão” ou que a tratam apenas em termos de identidade de classe. Para nós, a relação entre as classes é estrutural e, ao abordar nacionalidade, gênero, sexualidade, raça, etnia etc., o fazemos sempre nessa perspectiva classista. Nosso socialismo também se diferencia das diversas formas de nacionalismo: étnico-raciais, religiosas, territoriais, anticoloniais/imperialistas etc.

Como colocado, defendemos o anarquismo de massas e, portanto, sustentamos a necessidade da organização (em oposição aos antiorganizacionistas), a necessidade de lutar por reformas que apontem para um projeto revolucionário (em oposição àqueles que são contrários às lutas por reformas), e a necessidade de formas avançadas de luta que estejam vinculadas às lutas de massas (em oposição àqueles que consideram que atos de violência são gatilhos para mobilizar as massas).

No debate organizativo anarquista, somos dualistas organizacionais e, por isso, nos diferenciamos daqueles que se organizam apenas no nível de massas, daqueles que pretendem circunscrever os movimentos populares ao anarquismo ou daqueles que acreditam que um coletivo ou organização anarquista é suficiente. Sustentamos o modelo homogêneo e programático de organização específica anarquista, baseado na unidade, que se expressou historicamente no especifismo e no plataformismo, nos diferenciando do modelo heterogêneo da síntese. Como defendemos que a organização anarquista é autogestionária/federalista e que ela deve ter uma relação complementar e não hierárquica com os movimentos populares, nos diferenciamos dos partidos leninistas.

Em termos teóricos, nosso materialismo/realismo libertário se diferencia das abordagens marxista, neopositivista ou e pós-moderna / pós-estruturalista. Fazemos alguns contrapontos breve a seguir, mas recomendamos novamente aos interessados a leitura do documento “Nossos Princípios e Estratégia Geral”. Podemos dizer que temos tentado evitar a tentação contemporânea de combater o marxismo com pós-modernismo e vice-versa, traço que, infelizmente, identificamos em quase toda a esquerda. Estamos construindo uma teoria social libertária a partir de autores clássicos e contemporâneos do anarquismo, evitando cair nessa cilada.

Por um lado, pensamos ser fundamental superar os limites e solucionar as contradições do marxismo. Por outro, também achamos importante evitar os enormes problemas e equívocos do pós-modernismo, o qual tem avançado globalmente com a adoção do liberalismo progressista por parte considerável da esquerda. Queremos afirmar a importância de uma ciência e de uma razão críticas, e também de uma conciliação, em bases classistas, da discussão sobre nacionalidade, gênero/sexualidade e raça/etnia. Em breve, pretendemos publicar um material que, além de explicitar de modo mais profundo nossas posições teóricas, também explica suas diferenças com o marxismo e o pós-modernismo.

Além do anarquismo, que outras experiências históricas de lutas populares do Brasil e da América Latina inspiram a OSL?

Antes de tudo, não podemos esquecer que somos uma organização internacionalista. Na medida em que o capitalismo-estatismo é um sistema internacional e global, nossa proposta também deve acompanhar essa perspectiva. É por isso que o anarquismo organizado, especifista e plataformista, possui um projeto internacional e global, e possui referências teóricas e práticas que também são internacionais e globais.

Mas, dito isso, queremos dizer que o fato de nossa organização estar situada na América Latina em geral, e no Brasil em particular, faz com que, sem dúvida, sejamos permanentemente inspirados por mobilizações e resistências de nossa região. Contamos com uma tradição enorme de movimentos e lutas que envolveram operários, escravizados, camponeses, indígenas, quilombolas, mulheres e outros sujeitos. Trata-se de uma ampla experiência das classes oprimidas, que se iniciou desde a colonização e que se estende até o presente. A seguir, mencionaremos alguns desses movimentos e lutas que vêm nos inspirando cotidianamente.

No Brasil, houve diversas organizações e confederações indígenas, que combateram o Império português, como a Confederação dos Tamoios (1557-1567), quando os tupinambás organizaram um processo insurrecional contra a ocupação portuguesa na região litorânea entre Bertioga e Cabo Frio. Podemos citar também o Quilombo dos Palmares (1597-1695), um território autogestionário que continha mais de 20 mil habitantes entre libertos africanos, indígenas e brancos aliados, no território que hoje é o estado de Alagoas. Durou quase cem anos e libertou outros povos escravizados e dominados; lutou contra os maiores Impérios da época (Portugal e Espanha) e inspirou outros processos de resistências à escravidão e à colonização.

De maneira geral, os levantes indígenas em toda a América Latina também precisam ser lembrados. Eles não se resumiram a um desejo de independência nacional e estatista, mas almejaram a auto-organização de variados povos. Foram exemplos a resistência de Túpac Amaru no século XVI, e de seu descendente, Túpac Amaru II, no século XVII. Somadas à tradição da Revolução Haitiana (1791), ainda agitaram o Brasil diversas lutas indígenas, camponesas e abolicionistas contra a escravidão. Uma destas foi Canudos (1896-1897), outro território auto-organizado no Brasil, que lutou contra a fome e as péssimas condições de vida, no sertão do estado da Bahia. Foi liderada por Antônio Conselheiro e, apesar das contradições, em especial o caráter messiânico de seu líder e o discurso religioso, organizou um território comunal com mais de 25 mil pessoas, representando uma ameaça à ordem do Império e da futura república.

Foram e continuam sendo importantes para anarquistas brasileiros as lutas abolicionistas contra a escravidão negra, que culminaram na abolição em 1889, e certos episódios de enfrentamento mais radicalizado, como a Revolução Mexicana (1910-1913), que teve papel destacado dos anarquistas, a luta pela independência de Cuba e a luta contra a ocupação da Espanha no Marrocos.

Outra fonte fundamental de inspiração foi a experiência do sindicalismo revolucionário e do anarcossindicalismo na América Latina, levados a cabo no início do século XX. Os anarquistas foram fundamentais na construção dessas formas de sindicalismo em países como Brasil, Argentina, Uruguai, propondo organizar trabalhadores pela base e incentivar sua ação direta para conquistas imediatas frente ao capital e ao Estado e, ao mesmo tempo, construir uma via para a transformação revolucionária dessas sociedades. Dentro desse movimento, as mulheres tiveram um papel destacado em distintas localidades. Tanto nas articulações e nos enfrentamentos de classe, quanto nas lutas que envolveram a questão feminina, e que foram responsáveis por promover, na sociedade e no próprio movimento, a necessidade da emancipação da mulher.

No Brasil, esse sindicalismo revolucionário impulsionou três importantes ciclos de greve: 1906-1907, 1913-1914, 1917-1920. Este último ciclo contou com mobilizações centrais, como: a Greve Geral de São Paulo (1917), a greve geral de Curitiba (1917), a greve dos trabalhadores da Companhia Cantareira e Viação Fluminense (1918), a Insurreição Anarquista do Rio de Janeiro (1918), a mobilização da União dos Operários em Construção Civil (UOCC) e a conquista das oito horas para toda a categoria (1919), o nascimento da Federação Operária Mineira (1920) e a realização do Terceiro Congresso Operário (1920); contou também com protestos e movimentações massivas em Pernambuco, Bahia, Rio Grande do Sul e outras localidades do país.

Essas mobilizações reuniram milhares de trabalhadores e conquistaram os primeiros direitos trabalhistas no Brasil. Nesse período, houve diversas tomadas de portos e fábricas, por meio de processos insurrecionais. A primeira organização sindicalista de caráter nacional foi a Confederação Operária Brasileira (1906), influenciada por organizações anarquistas e feministas, tais como a Alliança Anarquista (1916), o Partido Anarquista Comunista do Brasil (1919) e a Liga Communista Feminista (1920).

Mais recentemente, outras experiências latino-americanas podem ser mencionadas. Desde a luta contra a ditadura militar em diferentes países latino-americanos, especialmente no Uruguai com a FAU – que encampou um radicalizado processo de luta, por meio de um braço armado (Organización Popular Revolucionaria 33 Orientales, OPR-33) e um braço de massas (Tendencia Combativa / Convención Nacional de Trajadores, CNT), profundamente influentes –, até inúmeras mobilizações de camponeses, trabalhadores rurais e urbanos, que aconteceram em nossa região. Desde as revoltas do povo Mapuche até os Zapatistas de Chiapas, no México.

Nos anos 1990-2000 os/as anarquistas no Brasil falavam de um processo de “radicalização democrática” e de uma “luta popular prolongada”. Como avaliam esses conceitos hoje em dia?

São conceitos que tiveram bastante relevância nesse período que vocês citam e que foram incorporados em nossa proposta teórica.

Quando se fala em “radicalização democrática”, isso resume, em outras palavras, nossa concepção de socialização generalizada, nossa própria concepção de socialismo. Tal concepção se diferencia daquela noção de que socialismo significa apenas a socialização da propriedade privada dos meios de produção. Sem mencionar que, ao longo do século XX, um setor enorme dos socialistas “transformou” acriticamente socialização em nacionalização (que são noções completamente diferentes), o fato é que essa radicalização democrática significa, em nossa corrente, uma socialização que envolve os campos econômico, político e moral-intelectual (cultural). Radicalizar a democracia significa implantar a autogestão em termos econômicos (fim da propriedade privada e estabelecimento da propriedade coletiva), políticos (fim do Estado e tomadas de decisão políticas estabelecidas por organismos populares e de base) e culturais (fim do monopólio da produção e da difusão de conhecimento e informações e sua consequente socialização).

Quando se fala em “luta popular prolongada” isso remete a algo relevante para nós: o fato de que uma transformação social revolucionária como esta que nos dispomos a impulsionar não é um projeto de curto ou médio prazo. Acreditamos que não há atalhos para ele. Vimos bem como as revoluções do século XX tentaram abreviar esse processo e não fizeram muito mais que substituir a dominação burguesa pela dominação burocrática, dando continuidade à sociedade de classes, à dominação, à exploração etc. Esse processo de transformação socialista e libertária que queremos promover é algo que deve ser construído cotidianamente, passo a passo, e é fundamental ter paciência revolucionária para isso. Em geral, usamos uma metáfora quando falamos desse tema: estamos correndo uma maratona e não adianta querer sair correndo na frente para desistir depois de pouco tempo; temos que ser capazes de perdurar no tempo e garantir a vitória das classes oprimidas ao final.

Hoje em dia, ainda que se fale muito de colonialismo e imperialismo, não se fala tanto de libertação nacional. Considerando que o anarquismo especifista dos anos 60-70 falava de revolução social e nacional ao mesmo tempo, como vocês avaliam hoje esse tema?

Esse é um tema interessante. Quando estudamos o anarquismo e saímos do eixo Atlântico Norte (Europa Ocidental e EUA), no qual os historiadores do anarquismo se concentraram quase que exclusivamente, encontramos uma longa tradição de lutas anticoloniais, anti-imperialistas e de libertação nacional. A questão nacional sempre foi cara aos anarquistas dos países periféricos, que lidaram com ela, na maioria dos casos, de modo coerente. Defenderam linhas teóricas e práticas libertárias, revolucionárias, classistas e internacionalistas. 

Esse foi o caso em diversos contextos. Por exemplo, na Ucrânia revolucionária (1918-1921), quando os makhnovistas tiveram de enfrentar o imperialismo austro-alemão; na Manchúria/Coreia revolucionária (1929-1932), quando os anarquistas foram obrigados a combater o imperialismo japonês; no Uruguai pré-ditadura militar de 1973, quando a FAU teve que enfrentar o imperialismo estadunidense.

Hoje em dia, temos um quadro interessante. Parte do anarquismo (e da própria esquerda) do eixo Atlântico Norte continua a minimizar a questão nacional e, principalmente no caso dos anarquistas, a confundir as lutas de libertação nacional com o nacionalismo. Por outro lado, uma crescente influência (curiosamente, muitas vezes por influência dos EUA e da Europa ocidental) de perspectivas teóricas decoloniais, pós-coloniais e outras que, se por um lado fazem críticas acertadas do eurocentrismo, por outro frequentemente caem no pós-modernismo, nos nacionalismos e acabam tendo uma influência restrita em termos práticos.

Para nós, tudo isso fica evidente quando analisamos o genocídio que o estado de Israel está promovendo neste momento contra a população palestina. O sionismo que subsidia o governo israelense é uma doutrina colonialista e racista, e estamos presenciando em tempo real um massacre sem precedentes, que tem que ser denunciado e combatido com toda a força necessária. É óbvio isso não é uma crítica ao povo judeu, e nem uma forma de antissemitismo, visto que, dentre os judeus, houve e há outras doutrinas contrárias ao sionismo, e que muitos deles estão se posicionando contra o atual genocídio. O curioso é que muitos desses que adotam posições decoloniais, pós-coloniais etc. permanecem quietos em relação ao que está acontecendo na Faixa de Gaza e na Cisjordânia.

Temos que retomar no mundo todo essa tradição anticolonial e anti-imperialista anarquista. Isso será importante para combater não apenas o sionismo israelense, mas também o imperialismo estadunidense. Entre outras coisas, isso também fará com que os anarquistas melhorem suas análises e posições frente à guerra entre Rússia e Ucrânia. Por exemplo, tem sido comum na esquerda mundial (e mesmo em setores do anarquismo) assumir as posições do imperialismo dos EUA na região e defender a Ucrânia acriticamente; e também apoiar sem crítica os interesses imperialistas da Rússia na região, pois isso seria uma forma de minar o imperialismo norte-americano...

Em suma, é necessário retomar a tradição anarquista anticolonial, anti-imperialista e de libertação nacional, fazendo com que seja possível compreender a realidade e adotar formas de intervenção política baseadas em pressupostos libertários, revolucionários, classistas e internacionalistas.