Nota nacional 02/23
Quando o assunto é a privatização de serviços públicos e ataques às classes oprimidas, todos os partidos políticos, na gestão do Estado, estão muito bem alinhados. Com menos de um ano do governo de Lula-Alckmin, vão se desfazendo as ilusões criadas pela derrota eleitoral de Bolsonaro e militares. Ao contrário das promessas de campanha, a pauta das privatizações avança, piorando as condições de trabalho e a qualidade dos serviços prestados à população.Não há dúvidas de que este governo de "frente ampla" governa para os patrões: silenciou aos pedidos de revogação das reformas trabalhista e da previdência; criou um novo teto de gastos com um nome diferente (o "arcabouço fiscal"), limitando investimentos públicos; fez vista grossa para a repressão policial nas periferias das grandes cidades, adotando também uma nova operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), entregando partes da segurança às Forças Armadas; mantém relações estreitas com militares e latifundiários, setores que sustentam pautas de ataques à classe trabalhadora e estimularam a ascensão da extrema direita no país.Na prática, o governo Lula-Alckmin confirma que a cerimônia de posse não passou de peça de marketing político, enquanto na realidade as classes oprimidas seguem sofrendo ataques, enquanto recebem no máximo medidas cosméticas.
A privatização avança
Um dos ataques centrais pretendidos há anos pelas classes dominantes é o avanço dos processos de privatização pelo território nacional. Assistimos a uma aceleração das licitações para privatizar presídios, transportes, águas e saneamento, além de sinais de avanço do modelo de Parcerias Público-Privadas (PPPs) para as áreas da saúde e educação. Tudo isso potencializado pelo novo tetos de gastos, chamado de arcabouço fiscal, que sucateia os serviços públicos para que os governantes venham com a solução mágica da privatização (concessão, parceria, ou qualquer outro nome que queiram dar para disfarçar). Seja em estados governados pela oposição de extrema direita, pela direita tradicional ou pela frente ampla, a privatização avança da mesma maneira.Por mais que o governo federal se esquive publicamente, ele possui uma enorme responsabilidade por isso. O que dá sustentação a esses planos é o PPI, Programa de Parcerias e Investimentos, criado no governo de Michel Temer (MDB), que é uma espécie de consultoria interna ao Estado, responsável por avançar as privatizações pelo país. Sob a tutela do ministro Rui Costa, o governo encabeçado pelo PT mantém o PPI e a agenda geral de privatizações, com raras exceções.
Um histórico das privatizações
Para entendermos o processo das privatizações precisamos compreender as mudanças ocorridas na cadeia produtiva e nos serviços públicos ocorridos no pós-Segunda Guerra Mundial. A crise do liberalismo econômico e político da década de 1920, a ascensão dos fascismos e o fortalecimento do socialismo, produziram nas classes dominantes a necessidade de reformulação nas suas políticas econômicas e sociais.Passou-se a difundir, principalmente na Europa das décadas de 1940 e 1950, a ideia de um Estado regulador ou de bem-estar social, que se preocuparia com os serviços sociais e essenciais à população (educação, saúde, saneamento público, energia, acesso a água etc.) e de quebra, afastaria as propostas radicais da esquerda socialista (o "fantasma" do comunismo). Essas ideias também defendiam que o Estado assumisse atividades econômicas que não interessavam ao setor privado, ou financiasse atividades privadas por meio de investimento e pesquisas pelas instituições estatais. Esse movimento deve ser entendido como uma mudança de programa das classes dominantes, o que diminuiu as tensões sociais e ainda conseguiu afastar o movimento operário para longe das propostas socialistas. Não à toa, começa a crescer uma socialdemocracia que afasta-se totalmente da perspectiva de destruição do capitalismo e passa a defender pequenas reformas, a nacionalização (estatização) de alguns setores e programas sociais. Apesar dessa realidade europeia ser bem diferente da brasileira, em nosso país também foram implementadas políticas e programas sociais nas décadas de 1940 e 1950, em específico no campo da assistência social, seguro social e programas sociais pontuais.Na década de 1970, entretanto, com a crescente derrota do projeto burocrático do socialismo soviético e o refluxo das lutas sociais e do projeto socialista, um setor das classes dominantes passa a defender o desmonte desses serviços sociais.
Foi um período de crise econômica (e crise do petróleo) que destruiu a ordem econômica do pós-guerra, ocasionando o aumento na dívida externa dos países periféricos. Também avançava a financeirização do sistema econômico (controle e fusão cada vez maior das empresas por bancos e seguradoras). As classes dominantes passaram a defender, cada vez mais, os cortes nos programas sociais e o desmonte de qualquer indício de Estado de bem-estar social. Avançava de maneira cada vez mais agressiva um novo modelo de acumulação capitalista e com ele, a ideia da privatização, modelo formalizado numa reunião, ocorrida em novembro de 1989, que ficou conhecida como O Consenso de Washington. A formulação por economistas de instituições financeiras como o FMI, Banco Mundial e o Departamento do Tesouro dos Estados Unidos de um receituário neoliberal.
Deste modo, avançam as privatizações nos governos Sarney (1985-1990) Collor (1990-1992) e Itamar Franco (1992-1995). Tal política prossegue nos governos Fernando Henrique Cardoso (1995-2003) e de maneira mais atenuada nos governos Lula (2003-2011) e Dilma (2011-2016).Para contrariar o otimismo socialdemocrata, mesmo a chamada "onda rosa", que se refere às eleições de candidatos progressistas na América Latina a partir da década de 2000, ficou marcada por governos que aplicaram em alguma medida as políticas do Consenso de Washington. No Brasil, os governos petistas mantiveram a regra da estabilidade de preços e a disciplina fiscal como base da sua política econômica.Com o golpe jurídico-parlamentar que destituiu a presidente eleita Dilma Rousseff em 2016, o neoliberalismo é aplicado pelas classes dominantes numa política de choque, nos governos Temer (2016-2019) e Bolsonaro (2019-2023).
Um breve debate sobre nossa concepção
Nós da Organização Socialista Libertária (OSL), como anarquistas, não acreditamos que os órgãos de Estado sejam de fato públicos, ou seja, bens comuns compartilhados pelo conjunto da sociedade. Não acreditamos na neutralidade do Estado, que é um instrumento das classes dominantes construído, historicamente, com o fim de perpetuar o próprio sistema de interesses privados e de dominação. Mesmo que em certas circunstâncias conjunturais possam ter instrumentos considerados mais democráticos, esses mecanismos só servem para enrolação, construção de currais eleitorais e para legitimar as políticas de ataque das classes dominantes.Fortalecemos as lutas de trabalhadoras e trabalhadores no setor público, também, por dois motivos. Primeiramente, por considerar fundamental, no imediato, a luta em defesa dos empregos (contra o fechamento de postos de trabalho ou precarização das relações de trabalho), dos salários e da qualidade dos serviços prestados à população. Em segundo lugar, a luta é importante para o acúmulo de força social rumo ao avanço da organização de setores amplos da classe trabalhadora.Buscamos a construção de uma sociedade nova estimulando a reflexão: como seria a autogestão dos serviços públicos de forma que trabalhadoras e trabalhadores pudessem se auto-organizar, com controle popular por meio da democracia direta, envolvendo os órgãos de base da sociedade? Em nossa concepção, o Estado também está submetido aos interesses privados de uma minoria, como os setores tecnocráticos que compõem o aparelho estatal (governantes de turno, carreiristas estamentais ou teocratas) e as classes dominantes em geral (proprietários de terra, grandes empresários, banqueiros etc.). Entretanto, taticamente, colocamos nossas forças em movimento contra as privatizações por entender que elas aprofundam a exploração e transformam em mercadoria serviços que não deveriam (em tese) buscar o lucro. Não acreditamos que a solução definitiva esteja na estatização. Nossa defesa contra a privatização é uma oposição a um ponto importante da estratégia do inimigo, além de contribuir para a experiência de luta e organização de nossa classe, bem como para a melhoria imediata das condições de vida. Defendemos, como programa, a transformação radical da sociedade visando um horizonte de um modelo organizativo autogestionário, de socialização e planejamento por meio da democracia direta. Nesse modelo, as trabalhadoras e os trabalhadores têm participação ativa na construção e na gestão das decisões tomadas coletivamente, não sendo meras "engrenagens" do trabalho – o que difere do modelo atual, de uma sociedade capitalista-estatista.
Exemplos de problemas causados pela privatização
A privatização de setores estratégicos - como energia, saneamento básico e transportes - e seus efeitos negativos não são novidade no Brasil. Mais recentemente, em 2021, houve a privatização da Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (Cedae), que dois anos depois, resultou no aumento da tarifa de cobrança e não universalizou o acesso ao saneamento básico no estado. O mesmo alerta se faz em relação à Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) e à Companhia de Saneamento de Minas Gerais (Copasa e Copanor, no norte do estado), que os governos de Tarcísio de Freitas (Republicanos-SP) e de Romeu Zema (Novo-MG) pretendem privatizar. Em Várzea Grande, município vizinho à Cuiabá (MT), o Departamento de Água e Esgoto (DAE) volta a ser pauta de interesse para vereadores locais ao se aproximarem as eleições municipais. O serviço público da região sofre com a falta de investimentos, enquanto os políticos alegam que a privatização vai melhorar a situação.
São reais os riscos de precarização do serviço público e aumento da tarifa para proporcionar lucro ao empresariado. Em Mato Grosso, os processos de privatizações tiveram início em meados dos anos 1990 e a lógica não fugiu das estratégias neoliberais promovidas pelo estado: ampliar o sucateamento, reduzindo investimentos e, assim, gerando prejuízos à sociedade e, também, aos próprios trabalhadores e trabalhadoras. Em 1996, as Centrais Elétricas Matogrossenses (Cemat) passaram a ter gestão compartilhada com a Eletrobrás S.A, iniciando seu processo de privatização; ao final do ano de 1997, ocorre sua privatização, tendo o Grupo Rede (atual Grupo Energisa) e Inepar ganhado o leilão e passando a controlar o setor elétrico no estado de Mato Grosso. Em 1998, ocorre a privatização das Telecomunicações de Mato Grosso S/A (Telemat), sendo controlada pela Brasil Telecom (atual Oi).
O processo de privatização do serviço de saneamento básico passou por algumas etapas, primeiro com a extinção da Companhia de Saneamento de Mato Grosso (Sanemat), com as funções passando para responsabilidade dos municípios. Depois foi criada a Empresa de Saneamento da Capital (Sanecap), no ano 2000, que teve sua privatização concretizada em 2011, com o controle passando para a CAB Ambiental, hoje Águas Cuiabá (Iguá). As lutas e resistência contra as privatizações não conseguiram impedir o processo. O aumento das taxas e tarifas contribuíram para o aumento do custo de vida, ao mesmo tempo que o serviço segue batendo recorde de denúncias no Procon.
Além disso, tanto a Iguá como Energisa têm a prática de terceirização, com precarização das condições de trabalho.Em São Paulo, a privatização da Eletricidade São Paulo S.A (Eletropaulo), em 1999, atualmente administrada pela italiana Enel, também trouxe prejuízos à população, como o aumento da tarifa e precarização dos serviços. Com quadro menor de trabalhadores (cortou 36% do pessoal desde que assumiu a empresa, há cinco anos) e pouco investimento em manutenção da rede – o que aumenta o lucro dos proprietários –, a empresa é incapaz de solucionar com rapidez situações de emergência, como a ocorrida após as fortes chuvas na região metropolitana de São Paulo em 03 de novembro. Diversos bairros e distritos permaneceram sem energia elétrica por mais de 72h, trazendo prejuízos diversos à população. Mais um exemplo de que privatização não é sinônimo de "eficiência", como seus defensores costumam afirmar. Em relação aos transportes, a privatização dos trens do Rio de Janeiro é um dos maiores exemplos de precarização dos serviços e prejuízos à sociedade para atender o lucro do empresariado.
A SuperVia, então pertencente à empresa japonesa Gumi e criada em 1998 para administrar os trens, em mais de 20 anos sucateou o sistema ferroviário do estado, registrando problemas operacionais, falta de investimentos e acidentes frequentes. A tarifa é uma das mais caras do país (R$7,40), excluindo parte da população que não consegue arcar com esse valor diário. A situação é tão precária que, em abril de 2023, a empresa japonesa optou por devolver a "concessão" (modalidade de privatização) ao governo do estado. Em São Paulo, as Linhas 4-Amarela (ViaQuatro) e 5-Lilás (ViaMobilidade) do Metrô já nasceram privatizadas. Em ambos os casos, os cofres públicos são prejudicados: pelo acordo, o governo do estado de São Paulo deve aportar altos valores caso a demanda pelo uso dos serviços fique abaixo do estipulado, evitando prejuízo às empresas que administram as linhas. Enquanto isso, as linhas do Metrô que permanecem públicas (Linhas 1-Azul, 2-Verde e 3-Vermelha) sofrem com sucateamento dos serviços e precarização do trabalho. É a privatização dos lucros, beneficiando as empresas, e a socialização dos prejuízos para a população". Apesar disso, o governo de São Paulo pretende estender a privatização das linhas do Metrô. Em relação aos trens metropolitanos - em sua maioria, administrados pela Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) -, a ViaMobilidade assumiu, em 2022, o controle das linhas 8-Diamante e 9-Esmeralda por 30 anos. Desde então, problemas no transporte são praticamente diários, com paralisação e atraso dos serviços, ocasionando diversos prejuízos à população.
Em Minas Gerais, o Metrô de Belo Horizonte foi privatizado neste ano. Apesar de recente, metroviários já apontam a postura autoritária da empresa, que reduziu o quadro de funcionários e não respeita determinações da CLT.
Tarefas para a luta imediata
O processo de privatização tem gerado mobilizações no país, ainda que restritas, principalmente, a setores do funcionalismo público com impulsos majoritariamente corporativistas. Ocorre, também, a hegemonia de burocracias sindicais controladas por partidos da ordem, preocupados em tocar a luta de maneira controlada visando objetivos eleitorais. Em São Paulo, por exemplo, houve no dia 03 de outubro a paralisação conjunta de metroviários, trabalhadores da Sabesp e da CPTM (trens metropolitanos). Com a participação de solidariedade de categorias como os estudantes e trabalhadores da Universidade de São Paulo (USP), a luta furou o bloqueio midiático e destacou a privatização na pauta do dia, além de colocar o governador de São Paulo na defensiva a ponto de ser obrigado a decretar ponto facultativo.
Acreditamos que para barrar o processo de privatização é necessário expandir o debate para além das direções sindicais e dos interesses corporativistas exclusivamente dos trabalhadores efetivos. É de grande importância trazer para arena política e para a luta os trabalhadores terceirizados e com outros tipos de contratação precária do serviço público, além dos setores de usuários dos serviços públicos. A privatização aprofunda a precarização do trabalho e dos serviços, e cria um fosso entre trabalhadores da mesma categoria, com direitos e salários muito diversos. É necessário levantarmos a pauta de direitos e salários iguais para efetivos e terceirizados, visando à equalização entre ambos e gerando condições de luta para todos os trabalhadores do setor.Sem a luta e organização desses trabalhadores em conjunto, aprofunda-se a entrega dos serviços públicos aos empresários, o que precariza serviços prestados à população: poucos funcionários, pouca estrutura e má qualidade – tendo em vista que o objetivo principal das empresas é o lucro e não o atendimento e o bem comum da sociedade. Estaremos na luta contra as privatizações a nível local ou federal independentemente de qual sigla esteja nos governos, com independência de classe; atuaremos contra a fragmentação dos trabalhadores por contrato de trabalho, lutando por direitos e salários iguais para todas e todos os trabalhadores; por fim, buscaremos a expansão dessas lutas para o conjunto das classes oprimidas usuárias dos serviços públicos, com o propósito de desmontar a manipulação da mídia defensora dos patrões.
Contra a precarização e a privatização dos serviços públicos!
Por uma unificação das lutas das classes oprimidas contra o avanço do neoliberalismo!
Trabalhadores e usuários juntos contra a precarização da vida para o lucro dos patrões!
Direitos e salários iguais para todas as trabalhadoras e trabalhadores!
Não à terceirização e precarização do trabalho!
OSL, 28 de novembro de 2023.