No dia primeiro de abril de 1964, um golpe organizado pelas classes dominantes brasileiras alastrou, por décadas, uma violenta repressão contra sindicatos, movimentos populares e organizações políticas; o regime se fechou em direção a uma ditadura militar que durou 21 anos, apoiada pela burguesia nacional e internacional.
Todos os anos, as organizações políticas de esquerda marcam a memória da resistência ao golpe e ditadura, mas é preciso ir além da memória como bandeira de agitação e fazer uma análise desse processo, para dele extrair lições que possam servir ao tempo presente. Longe de "querer remoer o passado", como disse Lula recentemente, fazer esse resgate 60 anos depois é tarefa importante frente aos ataques a direitos básicos das classes oprimidas, ao golpismo e ao avanço da extrema direita.
Ao contrário das análises liberais, que insistem na tese de que a "sociedade brasileira" desejava o golpe e a ditadura (por uma suposta "essência" autoritária) ou de que houve um desequilíbrio no sistema democrático burguês, nossa avaliação deve implicar numa análise classista e, a partir disto, definir uma linha política consequente.
OS MOTIVOS DO GOLPE MILITAR
O golpe militar deve ser compreendido como resultado do esgotamento do sistema político populista e uma resposta das classes dominantes ao bloco nacionalista-reformista representado por João Goulart. Esse bloco possuía uma linha política nacionalista e populista, assim como apostava na perspectiva política da conciliação de classes. Nesse sistema político populista, montado desde a década de 1940, em pleno governo Vargas, a ação da classe trabalhadora deveria se limitar a exigir pequenos ganhos políticos e econômicos e seus organismos (sindicatos, associações etc.) deveriam agir de maneira tutelada pelo Estado. O papel da classe trabalhadora, para o populismo, seria o de realizar reivindicações dentro da ordem, sem nenhuma proposta revolucionária e subordinando suas exigências aos limites da governabilidade burguesa.
O pano de fundo dessa perspectiva era a suposta possibilidade (que algumas organizações de esquerda ainda promovem hoje) de realizar mudanças estruturais que beneficiassem as classes oprimidas por meio da ação pacífica, da disputa institucional e da conciliação com a burguesia nacional, numa linha mais independente ao imperialismo e ao capital externo. Essa era a posição desse bloco nacional-reformista, representado à época por Jango, organizações trabalhistas, sindicatos e associações políticas que apostavam suas fichas na linha da conciliação de classes.
No entanto, sob o contexto do capitalismo periférico do período pré-64, as classes dominantes brasileiras, dependentes do capital multinacional e subordinadas ao imperialismo, jamais admitiriam que as classes oprimidas continuassem a receber pequenas conquistas pontuais. Com a crescente mobilização de classe, de sindicatos urbanos e rurais no início da década de 1960, a burguesia brasileira, associada a outros setores das classes dominantes, passou a agitar a possibilidade de um golpe militar, que derrotasse o bloco nacional-reformista e pusesse fim ao sistema político populista.
O instrumento dos golpes militares tinha sido agitado pelo imperialismo, em especial a partir da década de 1950, como uma solução "anticomunista" e que visava manter ou aprofundar a dominação imperialista no continente americano. O golpe militar foi então preparado por duas instituições golpistas, o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD); com a participação de empresários de empresas nacionais e multinacionais, militares, jornalistas, tecnocratas e intelectuais, essas organizações passaram a agitar uma intensa campanha golpista, com apoio e recursos financeiros do imperialismo norte-americano.
Seu objetivo imediato era derrubar o governo João Goulart, fortalecer a agitação da extrema direita (financiando as Marchas da Família com Deus pela Liberdade) e derrotar o bloco nacional-reformista e sua política de conciliação de classes. A médio e longo prazo, desejava-se consolidar a presença do capital externo na economia brasileira, reforçar a submissão ao imperialismo e destruir quaisquer perspectivas de mobilização social.
O GOLPE E A DITADURA MILITAR
A ditadura militar foi instituída como forma de derrotar o populismo, estancar a possibilidade das reformas de base que beneficiariam os setores das classes oprimidas e instituir um governo de extrema direita, subordinado ao imperialismo e que impedisse quaisquer tipos de organização e mobilização social classistas.
A ditadura achatou os salários, diminuiu o poder de compra, calou a mobilização classista e aumentou a concentração bancária, fundiária e de renda no país.
Um processo de violência generalizada, com sequestros, torturas, prisões e assassinatos foi executado a partir das Forças Armadas e seus sócios das classes dominantes. Eram perseguidos sindicatos, organizações de esquerda, movimentos populares, indígenas, camponeses e quaisquer setores que se posicionassem contrários à lógica do regime militar. Calcula-se que 1.654 camponeses e mais de 4 mil indígenas foram mortos ou desaparecidos, somando ditadura militar e o governo Sarney (1985-1989). A repressão não poupou nem crianças — filhos e filhas daqueles que ousaram se organizar e lutar contra as barbaridades da ditadura.
Assim como outras correntes de esquerda, anarquistas também sofreram a ação da repressão, com a invasão de seus espaços sociais, sendo vítimas de prisões e processos por sua ação política no movimento estudantil.
Valorosos companheiros e companheiras resistiram à ditadura com armas nas mãos e/ou em suas entidades classistas e, em que pese a forte repressão sofrida, seu exemplo permitiu que a resistência popular prosseguisse desgastando o regime e preparando a abertura democrática.
AS LIÇÕES PARA O TEMPO PRESENTE
A abertura democrática anistiou os golpistas e torturadores, enquanto garantia um renovado pacto social da Nova República. Um renovado sistema de dominação, que despia a farda da ditadura e vestia as roupas civis da democracia burguesa. Nesse pacto, as demandas e exigências sociais foram canalizadas para a institucionalidade, a despeito de que ainda durante a ditadura militar, nos anos 1980, numerosas manifestações, saques de supermercados e passeatas populares contra o aumento do custo de vida percorriam o país.
Um dos acordos implícitos deste pacto social era o de garantir que os movimentos populares não radicalizassem pela esquerda e que se submetessem aos limites estritos da democracia burguesa e da institucionalidade republicana. Por outro lado, era preciso garantir o processo de superacumulação burguesa e a manutenção dos privilégios da casta togada e fardada. Também era necessário garantir, por meio das eleições, a moderação das demandas populares e de seus movimentos, assim como um processo controlado de alternância no controle do aparato estatal. A moderação das demandas populares e trabalhistas, assim como o controle dos movimentos sociais, coube principalmente ao Partido dos Trabalhadores (PT) com sua formação nos finais dos anos 70 e consolidando seu controle sobre os movimentos ao ascender ao poder estatal em 2002 — momento em que é explícita a política de conciliação de classes pelo programa petista, e o engessamento das lutas.
No entanto, em 2013/14, dois elementos desse pacto foram rompidos. O primeiro foram as manifestações de junho de 2013, a destruição de propriedade privada e métodos de ação direta — ao menos nas grandes cidades urbanas — também trouxeram elementos difusos de consciência política (aproveitados à esquerda e à direita), evidenciando que o PT não podia controlar esses movimentos e nenhuma força política poderia concretamente canalizá-lo. A segunda é a reeleição de Dilma em 2014. Se a alternância de poder já tinha sido rompida nos pleitos eleitorais anteriores, a manutenção de um quarto mandato petista parecia inaceitável para um setor das classes dominantes. Apesar de ter beneficiado o sistema bancário, não ter ameaçado nenhum elemento estrutural do capitalismo brasileiro, os pequenos ganhos e as políticas pontuais de distributivismo fraco do PT pareciam inaceitáveis numa etapa recessiva do capitalismo e diante uma continuidade política que passava a ser questionada.
Parte dos setores das classes dominantes embarcam em mais uma ação golpista a partir dos instrumentos da Operação Lava Jato, canalizando a insatisfação difusa e um crescente movimento organizado de direita, mais visível de 2015 para frente, resultando no golpe jurídico-parlamentar de 2016.
Seis décadas depois do golpe militar, ainda vivemos num contexto de um renovado pacto e conciliação de classes, com a tentativa do governo Lula-Alckmin de "pacificar" o país, "reconstruir" uma parte do que foi destruído pelos governos Temer e Bolsonaro, e promover pequenas reformas sociais em acordo com parte da burguesia nacional. Essa linha política é atualmente hegemônica em muitos sindicatos, movimentos sociais e correntes políticas de esquerda, arrastando inclusive setores mais críticos ao lulismo a agirem como satélites nessa nova rodada de conciliação. Por essa lógica, o PT pacificaria mais uma vez os conflitos sociais expressados à direita e à esquerda, enquanto governaria a partir de um "consenso social" — hoje, despedaçado.
NÃO REPETIR OS ERROS DO PASSADO... NEM UM PASSO ATRÁS!
A tentativa reformista de mais um pacto de classes coloca todas as fichas na disputa institucional e na governabilidade burguesa. E pela lógica intrínseca do reformismo, sempre deixa em segundo plano a organização e ação social ou, mesmo em suas versões ainda mais atrasadas, a condena. Como exemplo dessa ação recuada, o governo Lula-Alckmin determinou, este ano, a não realização de eventos sobre os 60 anos do golpe militar.
Mesmo com a decisão de um setor da burguesia e do STF de reconstruir esse consenso, punindo pontualmente os golpistas de janeiro de 2023, e de retomar a normalidade democrática burguesa, sabemos que esse pacto social foi dividido e não poderá mais ser retomado em sua integralidade.
O partido fardado segue organizado e atuante no país, associado às forças políticas mais reacionárias do capitalismo brasileiro e articulado à setores da classe dominante de nosso país. Quaisquer tentativas de conciliação terminarão por desarmar nossa classe diante do enfrentamento político que vai sendo adiado. Nossa aposta deve ser não apenas de punição imediata dos golpistas e de desmonte de suas organizações protofascistas, mas de fortalecimento de uma perspectiva revolucionária nos movimentos do campo e da cidade, hoje hegemonizados pela lógica da conciliação.
Enquanto nossos inimigos se armam, propõem o endurecimento do regime e a mobilização permanente por suas bandeiras reacionárias, as grandes organizações e movimentos sociais de esquerda seguem confiando no STF, na judicialidade e governabilidade burguesa. Precisamos retomar uma perspectiva política que defenda os direitos da classe trabalhadora e avance na perspectiva do poder popular autogestionário.
Nos 60 anos do golpe militar de 1964, nossa linha política deve se colocar firmemente com três bandeiras de curto e médio prazo. Essas bandeiras não esgotam as demandas populares, mas são condições para que possamos superar o golpismo e abrir caminho para o avanço de outras lutas:
· Desmonte dos privilégios dos militares no Brasil, fim da polícia militar e das ações policiais repressivas nas periferias!
· Condenação dos torturadores, assassinos e financiadores da ditadura militar, reparação às vítimas e construção de centros de memória do período!
· Punição imediata de financiadores e da alta cúpula política e militar responsáveis pelos crimes cometidos nos anos do governo Bolsonaro!
Nem Esquecimento e Nem Perdão, Ditadura Nunca Mais!
Pela Revolução Social e o Socialismo Libertário!
Organização Socialista Libertária (OSL), 28 de março de 2024.