Marxismo, Stálin e a Crítica ao Anarquismo

Em dezembro de 2023, nos deparamos com a circulação, pelas redes sociais “marxistas-leninistas”, de uma antiga polêmica de Josef Stálin contra o anarquismo. Trata-se de seu clássico texto Anarquismo ou Socialismo?, de 1907, que, de tempos em tempos, ressurge retomando esse debate histórico.

Neste texto, nós, militantes da Organização Socialista Libertária (OSL), pretendemos contextualizar o debate e retomar questões importantes da história e da teoria do socialismo. Isso servirá para que as posições anarquistas e suas diferenças com o marxismo sejam realmente conhecidas. Queremos mostrar a fragilidade da crítica de Stálin, que só pode ser bem recebida por pessoas que não conhecem (ou fingem não conhecer) o anarquismo e a história do socialismo.

Nosso intuito não é polemizar com uma ou outra organização em particular, mas abrir um debate franco com a esquerda radical brasileira sobre o socialismo e os caminhos para o socialismo. Essa discussão nos parece relevante, tendo em vista o contexto em que estamos vivendo.

STALINISMO EM TENTATIVA DE REABILITAÇÃO

Dessa vez, a difusão do texto de Stálin foi feita pela União da Juventude Rebelião (UJR), associada à Unidade Popular (UP) e ao Partido Comunista Revolucionário (PCR). Essas organizações, como está evidente em seu site/jornal (A Verdade) e em suas redes sociais, têm feito parte de um esforço recente no Brasil para reabilitar Stálin e o stalinismo. (Ver, por exemplo: UJR, “Viva os 145 Anos do Marxista-Leninista Josef Stálin”; PCR, “Josef Stálin: o pai dos povos”)

Dentre outras coisas, essa reabilitação passa pela defesa de Stálin como seguidor mais legítimo de Lênin, e do stalinismo como o verdadeiro continuador do leninismo. Tal posição foi defendida, por exemplo, por Elena Ódena – revolucionária espanhola fundadora do Partido Comunista da Espanha (Marxista-Leninista) –, num texto também publicado em A Verdade e reproduzido pelas organizações mencionadas. Nele, Ódena destaca que Stálin foi o “aluno mais fiel e brilhante do imortal Lênin”, e que todos os seus críticos são, em maior ou menor medida, conspiradores partidários da reação burguesa e do imperialismo. Sobre o texto de Stálin, ela afirma:

Em sua obra Anarquismo ou Socialismo?, escrita em 1907, Stálin demonstra, magistralmente, à luz do materialismo histórico, a inconsistência do anarquismo, expondo com grande precisão e rigor a teoria da luta de classes e o princípio marxista da ditadura do proletariado. (Ódena, “A Contribuição Teórica e Prática Decisiva de Stálin para o Marxismo-Leninismo”)

Atualmente no Brasil, muitos/as que se reivindicam “marxistas-leninistas” são, na verdade, stalinistas, que têm se engajado nesse esforço de reabilitação. Lamentavelmente, esse esforço vem tendo certo impacto, em especial entre a juventude radicalizada.

Tentar reabilitar Stálin e o stalinismo não é apenas perigoso, mas principalmente prejudicial para a luta de classes no Brasil. Isso porque fortalecem o autoritarismo e a burocratização das lutas e dos movimentos populares.

A CRÍTICA MARXISTA AO ANARQUISMO E O TEXTO DE STÁLIN

Não há dúvida que a maior parte da crítica marxista ao anarquismo se baseia no senso comum ou naquilo que Karl Marx ou algum/a marxista escreveu sobre o anarquismo. É uma crítica que, não raro, ignora completamente os anarquistas e a história do anarquismo e, por isso mesmo, tem pouca (algumas vezes, nenhuma) materialidade ou relação com a realidade. (Ver o balanço da crítica marxista ao anarquismo em: Corrêa, Bandeira Negra: rediscutindo o anarquismo)

Assim situado, o texto de Stálin pode ser considerado até acima da média, visto que o autor pelo menos leu alguns anarquistas antes de fazer sua crítica. Entretanto, Stálin não deixa de reproduzir traços muito comuns da crítica marxista ao anarquismo. Autoproclamações “científicas”, “materialistas”, “dialéticas” e “rigorosas” que, com frequência, confundem ciência e teoria com doutrina e ideologia, substituem a verdade histórica daquilo que foi ou que é, por aquilo que gostariam que tivesse sido ou que fosse, por aquilo que Marx ou os/as marxistas disseram. (Malatesta, “Anarquismo e Ciência”; Van der Walt, “Fora das Sombras: a base de massas, a composição de classe e a influência popular do anarquismo e do sindicalismo [revolucionário e do anarcossindicalismo]”)

Quando a crítica anarquista acusa certos/as marxistas de se basearem na “metafísica”, algo que é criticado por Stálin em seu texto, é disso que normalmente se trata: autores/as ou militantes que defendem um sistema fechado de ideias, o qual, muitas vezes, não tem qualquer materialidade. Ou seja, essa acusação anarquista é uma denúncia do idealismo de certos/as marxistas; acusação que, obviamente, não se dirige ao marxismo como um todo.

Em seu texto, Stálin se coloca como um crítico sério. Diz que não quer fazer uma “crítica barata” e que pretende demonstrar “a inconsistência do anarquismo”. Tendo em vista que, para ele, “os anarquistas são verdadeiros inimigos do marxismo”, ele considera ser necessário “examinar a ‘doutrina’ dos anarquistas do começo ao fim e ponderá-la criteriosamente em todos os seus aspectos”.

A enorme pretensão de fazer tudo isso num texto sucinto, num pequeno panfleto, definitivamente não se concretiza. Pretendemos mostrar que certamente o texto de Stálin, de acordo com seus próprios termos e aqueles de Ódena, não examina a doutrina dos anarquistas do começo ao fim e, menos ainda, demonstra a inconsistência do anarquismo. Fazer isso com alguma seriedade demandaria um esforço muito maior, estudar a fundo os anarquistas e a história do anarquismo, algo que Stálin com certeza não fez.

A EXTENSÃO DO MARXISMO

Iniciaremos essa discussão contestando a maneira que Stálin estabelece as correntes do socialismo. Em seu texto, ele destaca que, no socialismo, “existem diferentes tendências”, as quais se subdividem “em três correntes principais: reformismo, anarquismo e marxismo”. Para nós, essa separação completa entre reformismo e marxismo não tem respaldo na realidade, pois uma análise histórica da extensão do marxismo deixa evidente que o reformismo sempre foi, e continua sendo, parte relevante da tradição marxista.

Para conceituar o marxismo, é imprescindível levar em conta ideias e ações, teoria e prática, assim como o amplo movimento popular do qual ele emergiu e sobre o qual teve influência determinante. São os mesmos critérios, por exemplo, que utilizamos para conceituar o anarquismo. (OSL, “Nossos Princípios e Estratégia Geral”) Isso significa que, ao definir a extensão do marxismo, temos a obrigação de levar em conta os escritos de Marx e dos/as marxistas, assim como sua prática política e histórica, tanto individual quanto coletiva. Não há dúvida que aquilo que os/as marxistas escreveram possui certa relevância, mas as experiências por eles/as construídas e protagonizadas são incontornáveis.

Compreendido dessa maneira, o marxismo definitivamente não constitui uma doutrina homogênea e monolítica. Sem dúvida, é possível identificar alguns de seus traços fundamentais e definidores, assim como suas correntes e expressões mais e menos relevantes. (Van der Walt, “Contrapoder, Democracia Participativa e Defesa Revolucionária: debatendo Black Flame, anarquismo revolucionário e marxismo histórico”) Entretanto, indiscutivelmente há divergências consideráveis entre os/as autores/as e as experiências marxistas. Qualquer um que estude com alguma seriedade Marx, os/as marxistas e a história do marxismo, sabe disso. O que também é verdade no anarquismo, ainda que, não raro, os/as marxistas (assim como os/as liberais) insistam em apontar “incoerência” apenas nas posições anarquistas.

Quem conhece um pouco desse tema sabe que há divergências consideráveis entre o jovem Marx e o Marx da maturidade (ex. questão das classes sociais), entre certas questões do Marx da maturidade e da obra de Friedrich Engels (ex. a dialética da natureza engelsiana), entre certas posições teóricas de Marx e certas práticas que ele adotou na realidade (ex. diferença entre a defesa revolucionária da Comuna de Paris e as posições adotadas na “Primeira Internacional”, quase sempre favoráveis à socialdemocracia reformista). Sabe, também, que há divergências consideráveis entre a socialdemocracia, o leninismo (de Lênin), o trotskismo, o stalinismo, o maoísmo e assim por diante.

Ainda que Stálin tenha escrito seu texto em 1907, e que naquele contexto a maior parte dessas correntes marxistas não existisse, certas divergências estavam colocadas e já eram bastante evidentes. Não reconhecer isso é desonestidade intelectual. É exatamente o que faz Stálin, quando pinta em seu texto um Marx plenamente revolucionário, defensor da revolução armada de massas e da Comuna de Paris como modelo revolucionário; ou quando, em sua definição das correntes socialistas, separa completamente Marx e Engels do reformismo, e a socialdemocracia do marxismo.

É impossível ler Marx, Engels, conhecer sua história e não identificar suas ambiguidades estratégicas. É certo que é possível encontrar um Marx e um Engels mais alinhados a essa perspectiva defendida por Stálin, que se expressou nas tradições revolucionárias (e autoritárias) do leninismo, do trotskismo, do maoísmo etc. A fundação da “Terceira Internacional” (Internacional Comunista) teve exatamente esse significado, de rompimento com o reformismo socialdemocrata e os descaminhos da “Segunda Internacional” (Internacional Socialista).

Contudo, também não é difícil encontrar um Marx e um Engels reformistas, socialdemocratas. Quando analisamos, por exemplo, a conduta de Marx e daqueles em seu entorno na “Primeira Internacional” (Associação Internacional dos Trabalhadores, AIT), amparada em alguns de seus escritos, assim como os projetos que eles incentivaram, as forças com as quais se aliaram, os votos que proferiram, tudo isso não deixa grandes dúvidas que o marxismo da AIT era hegemonicamente socialdemocrata. (Berthier, Marxismo e Anarquismo; Socialdemocracia e Anarquismo na Associação Internacional dos Trabalhadores, 1864-1877)

Na AIT, o grande debate entre suas maiores correntes (federalista e centralista) esteve em torno do papel do Estado na estratégia socialista. Mikhail Bakunin foi o maior representante dos/as federalistas e Marx dos/as centralistas. Dentre outros temas, esse debate passou pela utilidade da disputa parlamentar e a necessidade de defesa da república democrática. (Berthier, Marxismo e Anarquismo; Silva, Greves e Lutas Insurgentes: a história da AIT e as origens do sindicalismo revolucionário) Bakunin, por exemplo, criticava “os socialdemocratas da Alemanha”, que eram apoiados por Marx e Engels, por pregarem “como objetivo imediato de sua associação, a agitação legal para a conquista prévia dos direitos políticos”. E concluía: ao fazer os trabalhadores darem centralidade à disputa eleitoral, os socialdemocratas “amarraram o proletariado a reboque da burguesia”. (Bakunin, “Escrito Contra Marx”)

Muitas foram as situações que justificaram críticas desse tipo. Engels, por exemplo, ao criticar o levante anarquista ocorrido na Espanha em 1873, que pretendia promover uma revolução social por meio de uma insurreição armada, demonstra seu reformismo e seu etapismo, que será posteriormente assumido por Stálin e pelo stalinismo. Engels argumentava que, como “a Espanha é um país muito atrasado industrialmente”, não seria possível “falar de uma emancipação imediata e completa da classe operária”. De modo que aquele país teria que passar por “etapas prévias de desenvolvimento”, algo que consistia na defesa da “República”, que seria atingida com a “intervenção política [eleitoral], ativa, da classe operária”. (Engels, “Os Bakuninistas em Ação”)

Essas posições, presentes no campo marxista em geral, foram determinantes na formação das organizações históricas da socialdemocracia, assim como de importantes lideranças da “Segunda Internacional”, tais como Eduard Bernstein, Karl Kautsky, Paul Lafargue, Wilhelm Liebknecht, August Bebel e muitos outros. (Przeworski, “A Social-Democracia como Fenômeno Histórico”)

Mesmo que, desde o início, tenha havido setores revolucionários no marxismo, eles só passaram a ter expressão verdadeiramente relevante com o fortalecimento do bolchevismo no início do século XX, e, em particular, depois da Revolução Russa de 1917 e da criação da “Terceira Internacional”. (Berthier, Marxismo e Anarquismo) Naquele contexto, não deixa de ser curioso que os/as socialdemocratas tenham acusado Lênin e os/as bolcheviques de estarem se associando “à tradição de Bakunin” e, com isso, promovendo “um verdadeiro desvio da tradição marxista”. (Corrêa, Liberdade ou Morte: teoria e prática de Mikhail Bakunin)

MARXISMO E ESTATISMO: TEORIA E ESTRATÉGIA

Na Ideologia Alemã e no Manifesto, Marx e Engels sustentam uma compreensão do Estado (burguês ou capitalista) como uma forma política por meio da qual uma classe economicamente dominante (a burguesia) garante sua propriedade privada dos meios de produção e seus interesses de classe vinculados à exploração do trabalho. Nesses textos, o Estado administra os interesses da classe capitalista porque está sob a influência ou o controle direto de seus membros. Essa tese é relativizada por Marx no 18 Brumário, quando ele reconhece a autonomia relativa do Estado: em certos casos, a burguesia pode não ter o controle direto do Estado, mas na medida em que ele mantém o status-quo, termina beneficiando a burguesia. (Marx e Engels, Manifesto Comunista; A Ideologia Alemã; Marx, O 18 Brumário de Luís Bonaparte)

Marx compreende que, na sociedade capitalista, o Estado é um elemento da superestrutura, em certo sentido subordinado à base (infraestrutura) econômica e produtiva, a qual responde pela formação das classes sociais e do conflito estrutural entre elas. Tanto é assim que, com o fim da propriedade privada dos meios de produção, as classes deixam de existir e o Estado desaparece – tese muitíssimo difundida por Engels, que foi incorporada por Stálin em seu texto. (Marx, “Prefácio” a Uma Contribuição para a Crítica da Economia Política; Engels, Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico; Anti-Dühring)

A partir dessa compreensão, se estabeleceram as linhas estratégicas fundamentais do marxismo: 1.) Constituição do proletariado (classe) em partido; 2.) Conquista do poder político por parte dessa classe-partido. Linhas que se estabeleceram desde o Manifesto e que continuaram ao longo dos anos, mesmo depois da Comuna de Paris. (Ver, por exemplo: Marx e Engels, Manifesto Comunista; Marx, “Discurso de 08/09/1872”) Ainda que marxistas libertários/as discordem, a quase totalidade da tradição marxista compreendeu poder político como Estado, e partido como instrumento de organização política.

Ou seja, a conquista do Estado foi vista pela imensa maioria dos/as marxistas como elemento central de sua estratégia para o socialismo. Em função das mencionadas ambiguidades, o que mudou foi a forma que cada corrente compreendeu essas diretrizes. Para os/as socialdemocratas, elas implicaram a construção de partidos políticos socialistas e a conquista de posições no Estado por meio de eleições e da atuação legal. Para os/as bolcheviques, elas implicaram a construção de partidos revolucionários comunistas e a conquista do Estado por meio de uma revolução violenta. (Cole, História do Pensamento Socialista)

De qualquer forma, seria essa conquista do Estado pelo proletariado que permitiria desenvolver uma alavanca capaz de contribuir com a expropriação dos proprietários, com a socialização da propriedade privada e com a defesa da revolução dos trabalhadores. Isso abriria o caminho para o fim da propriedade privada, das classes e do próprio Estado. Seria, enfim, a emancipação dos/as trabalhadores/as. Nos termos do próprio Stálin:

A última etapa da existência do Estado será o período da revolução socialista, em que o proletariado conquistará o Poder do Estado e criará seu próprio governo (ditadura) para a destruição definitiva da burguesia. Mas, quando for destruída a burguesia, quando forem destruídas as classes, quando se consolidar o socialismo, não fará falta nenhum poder político, e o chamado Estado será relegado aos domínios da história. (Stálin, Anarquismo ou Socialismo?)

Observando esses argumentos, podemos dizer que, em termos teóricos, não parece haver dúvida que o marxismo é crítico do Estado (capitalista, burguês), prevendo inclusive seu desaparecimento. No entanto, em termos estratégicos, também não há dúvida de que o marxismo (ortodoxo) defende a tomada do Estado como um caminho imprescindível para o socialismo. É nesse sentido que afirmamos o vínculo íntimo entre marxismo e estatismo. Ainda que reconheçamos a existência, mesmo que muito minoritária, de um marxismo (heterodoxo) estrategicamente antiestatista. (Price, A Abolição do Estado: perspectivas anarquistas e marxistas)

ANARQUISMO E ANTIESTATISMO: TEORIA

Em Estatismo e Anarquia, nas “Três Conferências” e em outros textos do período anarquista, Bakunin desenvolve uma teoria do Estado que tem similaridades e diferenças com as posições de Marx, Engels e dos/as marxistas. De maneira similar, Bakunin também entende que, na sociedade moderna, o Estado é um instrumento político de dominação de classe que garante a exploração do trabalho. Ele também sustenta que, em certas circunstâncias (por exemplo, na França em 1851 e na Alemanha em 1871), mesmo sob o capitalismo, a burguesia não tem o controle direto do Estado. Mas, por manter a ordem, o Estado contribui diretamente para a continuidade da exploração burguesa. Ou seja, Bakunin tem acordo com as teses do Estado de classe e da autonomia relativa do Estado. (Bakunin, Estatismo e Anarquia: a luta dos dois partidos na Associação Internacional dos Trabalhadores; “Três Conferências Feitas aos Operários do Vale de Saint Imier”)

A partir desse ponto, as diferenças passam a ser muito significativas. Para Bakunin, a maneira que Marx e os/as marxistas conceituam a relação entre economia capitalista e Estado moderno está errada. Ele acusa Marx de sustentar que “o Estado político de todo país [...] é sempre o produto e a expressão fiel de sua situação econômica”; e que “para mudar o primeiro, basta transformar esta última”. E de não levar “em consideração nenhum outro elemento da história, tal como a reação, todavia evidente, das instituições políticas, jurídicas e religiosas sobre a situação econômica”. (Bakunin, “Carta ao Jornal La Liberté de Bruxelas”) Seria um certo determinismo econômico, que aparece de maneira bastante evidente no texto de Stálin.

Bakunin, Malatesta e outros/as anarquistas consideram que a estrutura do capitalismo é constituída por uma relação de influência e dependência mútua entre economia e política, economia capitalista e Estado moderno – dois elementos que, para eles, são indissociáveis, e que se somam a um terceiro, vinculado à legitimação cultural, intelectual e moral. É essa estrutura que produz as classes sociais, as quais, para os/as anarquistas, não têm base exclusivamente econômica.

Quando nos restringimos à relação entre economia e política, podemos dizer que é verdade que a estrutura econômica capitalista (propriedade/monopólio dos meios de produção e troca) produz a burguesia como classe dominante e o proletariado como classe oprimida. Mas a conformação das classes é mais complexa que isso. Porque a estrutura política capitalista, ou seja, o Estado moderno, também produz uma outra classe dominante: a burocracia, em função da propriedade/monopólio dos meios de governo e repressão, que separa governantes de governados/as.

De modo que, para os/as anarquistas, tanto a exploração do trabalho quanto a coerção física e a dominação político-burocrática são formas de dominação capitalista-estatista inseparáveis e associadas de modo sistêmico. Elas contribuem diretamente para a estruturação da sociedade. Por isso, a dominação de classe envolve um conjunto de classes dominantes, dentre as quais estão a burguesia e a burocracia, produzidas por essa relação entre capitalismo e Estado. Ambas podem estar mais ou menos alinhadas; elas possuem interesses em comum, mas também interesses próprios que, em certas ocasiões, entram em conflito. (Bakunin, Estatismo e Anarquia; “A Rússia”; Malatesta, A Anarquia; Corrêa, Liberdade ou Morte; “Contribuições Malatestianas para a Teoria Social”)

ANARQUISMO E ANTIESTATISMO: ESTRATÉGIA

A partir dessa compreensão, se estabeleceram as linhas estratégicas fundamentais do anarquismo: 1.) Mobilização das classes oprimidas (proletariado, campesinato e marginalizados/as); 2.) Destruição do sistema capitalista-estatista e construção do socialismo federalista e autogestionário (libertário), ambas protagonizadas pelas classes oprimidas. Linhas que foram forjadas desde a “Primeira Internacional” e defendidas pelos clássicos anarquistas de diferentes correntes, como Bakunin, Piotr Kropotkin, Malatesta, Luigi Galleani, Emma Goldman, Rudolf Rocker e outros. (Corrêa, Bandeira Negra; Van der Walt, “Revolução Mundial: para um balanço dos impactos, da organização popular, das lutas e da teoria anarquista e sindicalista em todo o mundo”)

Ou seja, no anarquismo, a socialização da propriedade dos meios de governo e repressão (ou “destruição do Estado”) sempre foi questão de princípio, juntamente com a socialização econômica (propriedade dos meios de produção e troca) e a socialização do conhecimento (propriedade dos meios de comunicação e instrução).

É por isso que entendemos o socialismo como socialização geral, que rompe com os fundamentos do capitalismo, do Estado, de suas instituições legitimadoras, e que possui como base uma sociedade em que os/as trabalhadores/as, por meio de suas instituições (conselhos, sindicatos, comunas, movimentos etc.), se auto-organizam e assumem seus destinos em suas próprias mãos. (OSL, “Nossos Princípios e Estratégia Geral”)

O argumento central anarquista é que a tomada do Estado, por eleições pacíficas ou revolta violenta, pode até levar a uma revolução política, mas nunca a uma revolução social. Ela pode até substituir as classes dominantes no poder, mas nunca põe fim à dominação/exploração de classe e nunca avança para o socialismo. (Bakunin, Estatismo e Anarquia; Kropotkin, “O Estado Moderno”; Malatesta, A Anarquia)

Bakunin, por exemplo, desde o fim dos anos 1860 e início dos 1870, dizia que se a estratégia marxista tivesse sucesso, se os socialistas tomassem o poder de Estado e nacionalizassem completamente a propriedade – conforme previsto, por exemplo, no Manifesto –, o que aconteceria seria o seguinte. Dentre as classes dominantes, a burguesia seria substituída pela burocracia; os/as novos/as dirigentes do Estado se tornariam uma nova burocracia, que continuaria a dominar e explorar os/as trabalhadores/as em seu próprio favor. Dentre as classes oprimidas, haveria poucas mudanças; novos senhores continuariam a lhes explorar, governar, reprimir e tutelar. (Bakunin, Estatismo e Anarquia) O capitalismo teria continuidade, seria recriado, agora, para usar o conceito de Kropotkin, sob forma de um “capitalismo de Estado”, que contaria com a dominação exclusiva da burocracia. (Kropotkin, “Anarquismo”)

Em 1872, essa foi a previsão de Bakunin, ao discutir criticamente a posição dos marxistas:

Não haverá, portanto, mais nenhuma classe, mas um governo, e, observai-o bem, um governo excessivamente complicado, que não se contentará em governar e administrar as massas politicamente, como o fazem hoje todos os governos, mas que ainda as administrará economicamente, concentrando, em suas mãos, a produção e a justa repartição das riquezas, a cultura da terra, o estabelecimento e o desenvolvimento das fábricas, a organização e a direção do comércio, enfim, a aplicação do capital à produção pelo único banqueiro, o Estado. Tudo isso exigirá uma ciência imensa e muitas cabeças transbordantes de cérebro nesse governo. Será o reino da inteligência científica, o mais aristocrático, o mais despótico, o mais arrogante e o mais desprezível de todos os regimes. Haverá uma nova classe, uma nova hierarquia de doutos reais e fictícios, e o mundo se dividirá em uma minoria dominando em nome da ciência, e uma imensa maioria ignorante. (Bakunin, “Escrito Contra Marx”)

Mas se quem toma o Estado é toda uma classe (o proletariado), como isso constitui essa “nova classe”, a burocracia? Os/As anarquistas sempre entenderam que o Estado é um instrumento político que promove o governo de uma minoria sobre a maioria. Não é possível, portanto, que uma classe tome o poder de Estado. Isso sempre acontece por meio de alguns representantes, que podem ser escolhidos por uma coletividade mais ampla ou que simplesmente se autoproclamam representantes. No Estado, tais representantes tendem estruturalmente a se afastar cada vez mais de suas origens e a defender progressivamente seus próprios interesses: a manutenção e o aumento de seu poder e de sua riqueza. (Berthier, Poder, Classe Operária e “Ditadura do Proletariado”)

Quando trabalhadores/as ocupam o Estado, eles se transformam em burocratas, em minoria governante:

Esta minoria [governante], porém, dizem os marxistas, compor-se-á de operários. Sim, com certeza, de antigos operários, mas que, tão logo se tornem governantes ou representantes do povo, cessarão de ser operários e colocar-se-ão a observar o mundo proletário de cima do Estado, não mais representarão o povo, mas a si mesmos e a suas pretensões a governá-lo. (Bakunin, Estatismo e Anarquia)

Para evitar esse processo de burocratização do capitalismo e chegar ao socialismo, seria necessário que a socialização da propriedade privada ocorresse junto com a socialização do poder político.

E não se poderia acreditar nesse “pulo” da teoria marxista que, de um momento para outro, faz com que socialização passe a significar nacionalização, sem qualquer reflexão crítica a esse respeito. Com ou sem intenção, o Estado se assemelha à sociedade... No entanto, socializar significa colocar sob controle e administração dos/as próprios/as trabalhadores/as; nacionalizar significa colocar sob controle e administração do Estado e da burocracia. (Vasco, Concepção Anarquista do Sindicalismo)

Somente a socialização generalizada leva ao fim das classes sociais e à emancipação dos/as trabalhadores/as. Não há fim da propriedade privada e do capitalismo sem o fim do Estado e vice-versa. Para os/as anarquistas, defender a conquista do Estado para promover o socialismo é praticamente a mesma coisa que querer que alguns/mas trabalhadores/as se tornem patrões/oas para, então, por fim ao capitalismo.

Enfim, em termos teóricos também não há dúvida que o anarquismo é crítico do Estado. Mas não se trata apenas do Estado capitalista ou burguês, mas do Estado em geral. O Estado é inseparável do capitalismo, por isso a conquista do Estado nunca levará ao socialismo. É nesse sentido que afirmamos o vínculo indissociável entre anarquismo e antiestatismo. Ainda assim, é importante ressaltar que nunca se deve definir anarquismo como antiestatismo – coisa que muitos “historiadores” do anarquismo fizeram, de maneira bastante equivocada. Isso porque, como já colocamos, o anarquismo é, também, socialista, anticapitalista. (Price, A Abolição do Estado: perspectivas anarquistas e marxistas)

O CAMINHO PARA O SOCIALISMO

Marxismo e anarquismo são doutrinas ou ideologias (no sentido anarquista, como conjunto de pensamento e ação) produzidas pelas classes oprimidas em luta. Ou seja, discordamos radicalmente das afirmações que colocam o marxismo como “a doutrina do proletariado” ou, nos termos de Stálin, “a teoria do socialismo”. O marxismo é tão “doutrina do proletariado” e “teoria do socialismo” quanto o anarquismo. São dois caminhos que os/as trabalhadores/as produziram coletiva e historicamente para defender seus interesses e chegarem ao socialismo. Também discordamos radicalmente de Stálin, quando diz em seu texto que o anarquismo não é verdadeiramente socialista e revolucionário, pois, em termos históricos, essa afirmação não tem materialidade.

Reconhecemos que o anarquismo teve menos oportunidades para colocar seu projeto à prova. Apesar de ter sido fortíssimo (especialmente por meio do sindicalismo revolucionário e do anarcossindicalismo) entre os anos 1870 e 1920, e de ter se destacado bastante em episódios avançados de luta, o anarquismo teve protagonismo em apenas quatro revoluções: México (1910-1913), Ucrânia/Rússia (1917-1921), Manchúria (1929-1932) e Espanha (1936-1939). (Van der Walt, “Revolução Mundial”) Em todos esses casos, não conseguiu avançar consideravelmente e nem garantir a existência duradoura de um projeto emancipador. Em outro momento, podemos discutir as forças e fraquezas desses processos, e colocar nossas críticas e autocríticas a eles.

Distintamente, as revoluções protagonizadas pelos marxistas conseguiram mais “vitórias” ao longo do século XX. Por esse motivo, o marxismo acabou tendo mais oportunidades de colocar seu projeto à prova. No entanto, essa afirmação não significa, de maneira nenhuma, que concordamos com quem exalta o marxismo em função dessas “revoluções vitoriosas”, em detrimento do anarquismo, que “nunca venceu uma revolução”.

O século XX deixou evidente que, desde um ponto de vista popular – das classes oprimidas, dos trabalhadores e trabalhadoras –, as revoluções marxistas não foram vitoriosas. Quem venceu na Rússia, na China, em Cuba etc. foi a burocracia vinculada aos partidos comunistas. Nesses países, nunca houve socialismo (socialização generalizada, da propriedade econômica e do poder político) e nem mesmo um caminho consistente para o socialismo. (Van der Walt, “Contrapoder, Democracia Participativa e Defesa Revolucionária”; “Resposta Detalhada a ‘International Socialism’”)

Quando falamos de caminho para o socialismo é imprescindível discutir a questão estratégica, ou seja, os meios que serão utilizados para se atingir os fins socialistas. Os/As anarquistas sempre afirmaram, em concordância com os maiores teóricos da guerra, que os objetivos devem subordinar a estratégia, e esta as táticas. Assim, a concretização das táticas deve apontar para a concretização da estratégia e esta para o atingimento dos objetivos. Ou seja, os meios devem ser condizentes com os fins. (Malatesta, “Os Fins e os Meios”; “Socialismo e Anarquia”; FARJ, Anarquismo Social e Organização)

Se os anarquistas criticaram o marxismo histórico não foi por defenderem um tudo ou nada, um objetivo finalista sem mediações estratégicas e táticas. Inclusive, a corrente historicamente majoritária do anarquismo, o anarquismo de massas, sempre defendeu a luta pelas reformas dentro de certos marcos programáticos, como um caminho para a luta revolucionária. (Silva, Os Revolucionários Ineficazes de Hobsbawm: reflexões críticas de sua abordagem do anarquismo)

A crítica anarquista ao marxismo se deu (e continua se dando) porque os meios estatistas do marxismo não levam aos fins socialistas, mas ao reformismo ou ao burocratismo. Não é uma questão, como coloca Stálin, de caminhar de um programa mínimo a um programa máximo, mas de acreditar, como ele faz em seu texto, que a defesa da “república democrática” de alguma forma conduzirá ao “socialismo”. Isso é mesma coisa que alguém querer sair de São Paulo rumo ao Pará e pegar uma estrada para Rio Grande do Sul, acreditando que em algum momento chegará ao destino previsto.

De modo geral, o “socialismo” marxista do século XX, que foi instituído de maneira revolucionária, pode ser caracterizado como um conjunto de processos que resultou de revoluções políticas e que promoveu mudanças nas classes dominantes de diferentes países. Como previsto pelos/as anarquistas, tais processos acabaram suprimindo suas burguesias nacionais e transferindo o poder econômico e político para as burocracias de Estado. Burocracias que, de acordo com uma análise materialista ou realista consistente, ainda que se reivindicassem “o proletariado”, “os trabalhadores”, nunca deixaram de ser burocracias privilegiadas, responsáveis pela continuidade da dominação de proletários/as e camponeses/as. (Van der Walt, “Resposta Detalhada a ‘International Socialism’”; Tragtenberg, Reflexões sobre o Socialismo; Cole, História do Pensamento Socialista)

A experiência dos Estados revolucionários marxistas do século XX, deve-se dizer, corroborou tragicamente as previsões anarquistas e sindicalistas [revolucionárias e anarcossindicalistas]. Na prática, independente das intenções ou dos objetivos emancipatórios do marxismo clássico, essas políticas proporcionaram a rationale básica para as ditaduras de partido único do antigo bloco soviético. (Van der Walt, “Revolução Mundial”)

Obviamente, tais afirmações não significam que não reconhecemos possibilidades e avanços nessas experiências. É claro que eles existiram e, em certos casos, possuem impacto até o presente. Isso foi (e continua a ser) reconhecido por muitos/as anarquistas. Vários deles/as, inclusive, tiveram participação nessas experiências, e/ou deram seu apoio mais ou menos crítico a elas.

Agora, a questão central, indiscutível, é que as chamadas revoluções socialistas do século XX foram revoluções políticas, e não sociais; implicaram substituição de classes dominantes, mas nunca o fim das classes e o socialismo, no sentido colocado anteriormente, de socialização generalizada, da propriedade econômica e do poder político. De modo que, do nosso ponto de vista, nunca houve, até hoje – para além de certos episódios, mais ou menos duradouros, de determinadas fases de revoluções, de processos de alguma envergadura – uma experiência vitoriosa, de sucesso, de revolução socialista no mundo. Ainda que tenhamos muito o que aprender com inúmeras experiências de luta, mais e menos revolucionárias, todas as revoluções até o presente devem ser vistas como aquilo que efetivamente são: projetos que deram errado, lutas em que o projeto emancipador dos/as trabalhadores/as foi derrotado.

O socialismo do século XXI é um projeto em construção. A análise crítica das experiências do passado é importante, mas definitivamente não é suficiente. Nessa análise precisamos ter em mente que, além de não serem modelos que podem ser importados para outras realidades, as revoluções estatistas do século passado têm pouco a dizer sobre emancipação popular e socialismo.

A grande questão é discutir qual será o socialismo do século XXI e qual é o melhor caminho (meios) para se chegar a ele (fins). É fundamental discutir se esse socialismo será construído de baixo para cima, pela base, pelos/as próprios/as trabalhadores/as, ou se ele será instituído de cima para baixo, pela cúpula, pela burocracia estatal e partidária; se ele será libertário, autogestionário, democrático ou se ele será dominador, autoritário.

Para nós, não há outro caminho para o socialismo senão esse caminho libertário; de um socialismo autogestionário, democrático, que seja construído pela base, a partir dos movimentos populares em luta. (OSL, “Nossos Princípios e Estratégia Geral”)

DITADURA “DO PROLETARIADO”: TEORIA E HISTÓRIA

Afirmamos anteriormente que a estratégia de conquista do Estado não é um caminho para o socialismo. Isso nos leva ao tema da ditadura do proletariado, defendida por Stálin em seu texto. Antes de tudo, é bom deixar claro que na discussão desse tema há questões importantes, que envolvem o processo revolucionário, a expropriação das classes dominantes, a defesa da revolução, o poder das classes oprimidas etc. São questões que podemos discutir com mais profundidade em outra ocasião.

Por ora, nos interessa avançar nesse debate sobre a ditadura do proletariado no marxismo. Mas como esse tema surgiu e se difundiu entre os/as marxistas? Em Marx, esse não é um conceito central e aparece poucas vezes, em geral com o significado de “poder do proletariado”, o qual Marx chegou a dizer que seria o triunfo da democracia. Em Engels, o termo é utilizado com dubiedade. No mesmo ano de 1891, por exemplo, ele define a ditadura do proletariado como a Comuna de Paris (“Introdução” a Guerra Civil na França), no trecho citado por Stálin, e como república democrática parlamentar (“Crítica do Programa de Erfurt”), texto que Stálin não leu ou omitiu. Foi apenas com Lênin e o marxismo-leninismo que essa noção de ditadura do proletariado foi aprofundada e recebeu centralidade estratégica. (Berthier, Poder, Classe Operária e “Ditadura do Proletariado”)

Dali em diante, essa interpretação de Stálin ganhou muitíssimo espaço no marxismo (embora não apenas por meio de seus escritos). Para ele, “a revolução socialista deve começar pela ditadura do proletariado”, ou seja, “a ditadura de toda a classe do proletariado sobre a burguesia”. Essa ditadura seria o meio fundamental para expropriar a burguesia, defender a revolução e garantir a construção da “sociedade socialista”. Nessa sociedade, continua Stálin, “não haverá classes de nenhuma espécie [...] e tampouco haverá, portanto, exploração”. Nela, “haverá somente trabalhadores que produzirão coletivamente” e que “possuirão coletivamente toda a terra e todo o subsolo, todos os bosques, todas as fábricas e oficinas, todas as ferrovias etc.”.

Como muito bem pontuou Luigi Fabbri, essa noção de ditadura de classe, especialmente do proletariado ou dos/as trabalhadores/as, não tem qualquer sentido:

A palavra “ditadura” [...] em todos os idiomas antigos e modernos sempre indicou uma forma de governo absoluto, que centraliza nas mãos de uma ou poucas pessoas todos os poderes do Estado, militares, políticos e sociais. [...] Uma ditadura coletiva, da maioria, mais ou menos eletiva, de toda uma classe, popular etc., como hoje se fala de uma “ditadura do proletariado”, seria uma contradição em termos, visto que a característica própria de toda ditadura consiste no poder acumulado [centralizado] em uma ou poucas pessoas e não desmembrado [socializado] em uma coletividade. [...] A característica da ditadura é o poder em poucas mãos. (Fabbri, Ditadura e Revolução)

A definição de ditadura que Fabbri nos apresenta é precisa e acertada. O Stálin de 1907 podia até negá-la ou tergiversar, falando que há “dois tipos de ditadura”, as de minorias e as de maiorias(?), mas o “socialismo” marxista do século XX e, em particular, o Stálin e o stalinismo dos anos 1930, definitivamente a confirmam. Por isso mesmo, os/as anarquistas não “confundiram essas duas ditaduras”, como afirmado por Stálin em seu texto, exatamente porque uma delas não existe. O que houve nas experiências revolucionárias marxistas de “socialismo”, incluindo a URSS, foi, sem dúvida, uma “ditadura de minoria”, nos termos do próprio Stálin. Ditadura esta que nunca contou com aspectos defendidos por ele mesmo em seu texto: “a chamada liberdade política, isto é, a liberdade de palavra, de imprensa, de greve e de associação, numa palavra, a liberdade da luta de classes”.

Como já apontamos, analisar essas experiências marxistas do socialismo, como qualquer problema de história, exige uma perspectiva materialista consistente, que não reproduza e nem se deixe levar pelos discursos legitimadores, e que examine criticamente os fatos. Ao fazer essa análise realista, não há outra conclusão senão que essa equiparação entre classe e partido, proletariado e comunismo, que é feita pelo marxismo ortodoxo em geral, e que Stálin reproduz em seu texto, não tem respaldo na realidade. Ela não é mais do que uma tentativa grosseira de autolegitimação, promovida por um discurso sem qualquer materialidade.

Assim como a burocracia de Estado não é o proletariado, a ditadura no “socialismo” marxista não é do proletariado, mas da burocracia. Não há como os/as trabalhadores/as ocuparem o Estado e nem como promoverem uma ditadura coletiva. Nas revoluções socialistas encabeçadas pelo marxismo nunca houve trabalhadores/as no poder nem uma ditadura de classe. O que houve foi sempre a ditadura de um setor bastante restrito dos trabalhadores (quando não, da pequena burguesia) sobre o proletariado (e o campesinato). É por isso que falamos em ditadura “do proletariado”, com estas aspas. Aliás, é sintomático que o marxismo tenha se apropriado da expressão “ditadura do proletariado” em detrimento de outras, como “democracia operária”, “poder dos trabalhadores” etc. (Van der Walt, “Resposta Detalhada a ‘International Socialism’”; Tragtenberg, Reflexões sobre o Socialismo; Cole, História do Pensamento Socialista; Berthier, Poder, Classe Operária e “Ditadura do Proletariado”)

DITADURA “DO PROLETARIADO” E “SOCIALISMO” MARXISTA

É notável que, em seu texto, Stálin tenha apresentado essa crítica anarquista da ditadura do “proletariado” com certa fidelidade. Ele afirma que os/as anarquistas estão errados/as quando acusam os/as marxistas de “querem implantar não a ditadura do proletariado, mas a sua própria ditadura sobre o proletariado”. Stálin foi atropelado pela história que, alguns anos depois, deixaria claro que foi exatamente esse o caso nas experiências do “socialismo” marxista e na URSS.

Os aspectos fundamentais dessa crítica anarquista, retomados a seguir, foram sem dúvida confirmados pela história: Uma ditadura burocrática, mesmo que se proclame “do proletariado”, tende a se perdurar no poder e não avança para a emancipação popular, o socialismo, o comunismo. Essa ditadura promove a continuidade da dominação/exploração dos/as trabalhadores/as (proletariado, campesinato etc.) e apenas reestrutura, dá continuidade à sociedade de classes. Ou seja, a dominação e a exploração dos/as trabalhadores/as não é um caminho estrategicamente coerente para sua própria emancipação. Em nossa concepção, essa emancipação só pode ser atingida por meios emancipadores: a organização autogestionária e federalista (democracia de base) dos/as trabalhadores/as.

A ditadura burocrática é um dos traços mais importantes das experiências revolucionárias do “marxismo do século XX”, o qual acabou “chegando a uma ideologia que sustentaria sucessivas ditaduras”. Ao analisarmos “a história do marxismo em um terço do mundo, outrora governado por regimes marxistas”, constatamos sem grandes dificuldades que a concepção de “uma ditadura centralizada encabeçada por um partido de vanguarda como agente da revolução” foi responsável pelas “ditaduras de partido único estabelecidas na Rússia, na China e em outros países”. (Van der Walt, “Revolução Mundial”)

Tais fatos confirmam, novamente, a previsão de Bakunin, feita mais de 40 anos antes da Revolução Russa:

Segundo eles [os marxistas], este jugo estatista, esta ditadura é uma fase de transição necessária para chegar à emancipação total do povo: sendo, a anarquia ou a liberdade, o objetivo, e, o meio, o Estado ou a ditadura. Assim, portanto, para libertar as massas populares, dever-se-ia começar por subjugá-las. No momento, nossa polêmica parou nesta contradição. Os marxistas sustentam que só a ditadura, evidentemente a deles, pode criar a liberdade do povo; a isso respondemos que nenhuma ditadura pode ter outro objetivo senão o de durar o máximo de tempo possível e que ela é capaz apenas de engendrar a escravidão no povo que a sofre e educar este último nesta escravidão; a liberdade só pode ser criada pela liberdade, isto é, pela insurreição de todo o povo e pela livre organização das massas trabalhadoras de baixo para cima. (Bakunin, Estatismo e Anarquia)

Tal posição, que já havia sido anteriormente manifestada por Pierre-Joseph Proudhon, foi repetida por inúmeros/as anarquistas desde Bakunin, como no caso daqueles/as que participaram dos desdobramentos ucranianos da Revolução Russa, e que foram traídos/as e/ou eliminados/as pelos bolcheviques. Em 1926, Nestor Makhno, Piotr Arshinov, Ida Mett e outros, na “Plataforma Organizacional”, reafirmaram que o regime da “‘ditadura do proletariado’ estabelecido pelos bolcheviques na Rússia” tinha como base a convicção de que “este regime deveria ser apenas um passo transitório rumo ao comunismo total”. Entretanto, ele terminou levando “à restauração da sociedade de classes, com os operários e os camponeses pobres permanecendo, como antes, na parte inferior”. (Dielo Truda, “A Plataforma Organizacional da União Geral dos Anarquistas”)

Em outro momento podemos discutir as continuidades e descontinuidades que existem no socialismo estatista que vai de Marx a Stálin, passando por Engels, Lênin, Trotsky, Mao etc. Ainda assim, não parece haver dúvida que a mencionada confusão/substituição da classe com/pelo partido se difunde teoricamente e se aprofunda praticamente com as mencionadas revoluções do século XX. E isso contribui de modo determinante em diferentes países para que a burocratização capitalista tome o lugar do projeto socialista.

O caso da Revolução Russa é um exemplo típico. Um processo revolucionário, que em seu início teve perspectivas libertadoras e participação ampla das massas, fazendo dos sovietes/conselhos sua maior referência, foi logo se degenerando e se burocratizando. A ascensão dos bolcheviques ao poder implicou, progressivamente, essa burocratização degenerada da revolução, que terminou em pouco tempo estabelecendo e sustentando um “capitalismo de Estado”. “Na Rússia, a revolução foi enterrada pela ditadura”, a qual implicou “a sangrenta subjugação das classes não possuidoras”, o “banimento de todos os autênticos socialistas e revolucionários” e a “falta total de direitos da classe operária”. (Rocker, Os Sovietes Traídos Pelos Bolcheviques)

Mesmo historiadores marxistas mostraram como, ao longo do processo revolucionário, se deu a substituição do partido pelo seu comitê central, e, enfim, sob Stálin, a substituição do comitê central pela figura de seu grande líder. (Ver, por exemplo: Broué, Comunistas Contra Stálin; União Soviética: da revolução ao colapso; Marie, Stálin) Mas, ao analisar a participação anarquista e os estudos libertários sobre a Revolução de 1917, fica evidente que esse processo não aconteceu apenas sob Stálin. Ele se iniciou muito antes, assim que os bolcheviques foram retirando força dos sovietes/conselhos, estabelecendo sua ditadura sobre proletários/as e camponeses/as, e reprimindo a oposição socialista e revolucionária de esquerda.

Livros de anarquistas clássicos – como Minha Desilusão na Rússia, de Emma Goldman, e Os Sovietes Traídos Pelos Bolcheviques, de Rudolf Rocker – e estudos libertários mais recentes – como A Revolução Russa (M. Tragtenberg), Os Anarquistas Russos, os Sovietes e a Revolução de 1917 (A. Skirda), Marxismo e Anarquismo na Revolução Russa (A. Lehning), A Cem Anos da Revolução Russa: dos sovietes livres à restauração do privilégio (F. Mintz) – possuem bastante serventia nesse sentido. Comprovam, com informações e fontes abundantes, que a crítica anarquista possui fundamento e respaldo histórico. E ainda permitem que a participação e as posições anarquistas naquele contexto possam ser devidamente conhecidas.

Em suma, não apenas a Revolução Russa, mas todas as experiências do “socialismo” marxista ao longo do século XX demonstram, como sustentado pelos/as anarquistas, que a fórmula da ditadura “do proletariado” defendida por Stálin em seu texto não conduz ao socialismo, à emancipação popular. Os anarquistas mencionados no texto de Stálin estão corretos: a “ditadura do proletariado” é, realmente, “a morte da revolução”.

OUTROS ERROS DE STÁLIN SOBRE O ANARQUISMO

Por fim, há outros erros de Stálin sobre o anarquismo que valem ser mencionados. Sobre a relação entre indivíduo e sociedade, ele sustenta que “a pedra angular do anarquismo é o indivíduo, cuja libertação constitui, a seu ver, a condição principal da libertação da massa, da coletividade”. Posição que é contraposta por diferentes clássicos anarquistas. Rocker, por exemplo, reconheceu a influência determinante que a sociedade exerce sobre o indivíduo:

O homem é acima de tudo uma criação social em que toda a espécie trabalha lenta, mas sem interrupção, e da qual sempre extrai novas energias, celebrando sua ressurreição a cada segundo. O homem não é o descobridor da coexistência social, mas seu herdeiro. Ele recebeu o instinto social de seus ancestrais animais cruzando o limiar da humanidade. Sem sociedade, o homem é inconcebível. (Rocker, “Anarquismo e Organização”)

E Bakunin, criticando a concepção individualista de liberdade de Rousseau, afirmou que a liberdade individual só é possível na liberdade coletiva; defendeu a “liberdade de cada um pela liberdade de todos” e, também, que a “liberdade só é possível na igualdade”. Para Bakunin, “a liberdade dos indivíduos não é absolutamente um fato individual, é um fato, um produto coletivo. Nenhum homem poderia ser livre fora e sem o concurso de toda a sociedade humana.” (Bakunin, “Três Conferências...”)

Além disso, Stálin confunde marxismo com materialismo histórico-dialético, apresentando ambos praticamente como sinônimos. Essa confusão é muito comum entre os/as marxistas e envolve a própria noção de “socialismo científico”, tão difundida por Engels. Como muito bem apontou Malatesta, uma coisa é a interpretação da realidade social, outra é o julgamento dessa realidade e a intervenção que se faz sobre ela com vistas a atingir determinado objetivo. Certamente, ambas estão ligadas, e só se pode fazer uma intervenção adequada na realidade se esta for devidamente entendida. Mas elas não são a mesma coisa. (Malatesta, “Anarquismo e Ciência”)

Entre os/as marxistas, o adjetivo “científico” de seu socialismo serviu/serve principalmente de discurso legitimador. Assim como qualquer ideologia ou doutrina (inclusive o anarquismo), o marxismo não se restringe a um método, uma perspectiva científica e/ou filosófica de compreensão da realidade. Que haja ciência no marxismo em suas análises da realidade, ninguém pode negar. E consideramos que, de fato, a ciência deve ser usada criticamente pelos/as socialistas para tanto.

Mas também há no marxismo (no anarquismo etc.) princípios, fundamentos éticos, concepções valorativas e aspirações de mundo que não são científicos; eles extrapolam a ciência e são centrais para subsidiar os julgamentos da realidade, os estabelecimentos de objetivos e os métodos de ação. Os/As socialistas não podem querer que a ciência dê respostas para tudo isso. (FAU, “Huerta Grande”) Ou seja, Stálin está errado quando considera em seu texto que o “socialismo proletário” deriva (quase) automaticamente do “materialismo dialético”.

Quando Stálin cita as críticas de Kropotkin a Hegel como evidência de um caráter antidialético do anarquismo, ele ignora que, dentre os/as anarquistas, sempre houve certa pluralidade teórica e filosófica, assim como dentre os/as marxistas. Em ambas as correntes socialistas não há um corpo teórico e filosófico monolítico e unânime; o que existe são amplos debates internos sobre tais questões. Somente os setores mais dogmáticos sustentam haver, seja no anarquismo ou no marxismo, linhas teóricas e filosóficas retilíneas e profundamente homogêneas, e que quaisquer discordâncias em relação a elas devem ser consideradas “revisionistas”.

Não discutiremos aqui a validade da filosofia hegeliana. Afirmaremos apenas que, se é verdade que Kropotkin não considera Hegel relevante, por ser excessivamente abstrato e idealista, outros/as anarquistas retiraram dele contribuições importantes. Recordemos, por exemplo, que em sua juventude Bakunin foi o maior hegeliano da Rússia, e teve um papel na esquerda hegeliana muito maior do que o de Marx e o de Engels. (Del Giudice, O Jovem Bakunin e o Hegelianismo de Esquerda)

Stálin ainda realiza em seu texto um curto resgate de Proudhon – que é feito indiretamente, pelo olhar crítico de Marx – repreendendo certos aspectos metafísicos de seu pensamento político. Retoma a crítica de Marx a Proudhon e, sem maiores explicações, envolve na discussão o liberal Spencer, colocando ambos como bases do anarquismo. Em relação a isso, três comentários podem ser feitos.

Primeiro, que a riqueza do pensamento político de Proudhon definitivamente não é abordada na crítica de Marx (Miséria da Filosofia). Para conhecer o pensamento proudhoniano é necessário estudar seus escritos ou buscar comentadores qualificados, como Jean Bancal, Georges Gurvitch, Pierre Ansart e René Berthier; sobre o debate Filosofia da Miséria X Miséria da Filosofia, vale ler a “Introdução” de José C. Morel à publicação do livro de Proudhon pela editora Ícone. Segundo, ainda que Proudhon possa ser considerado o pai do anarquismo, a apropriação de suas ideias pelos/as anarquistas posteriores foi crítica e parcial. O aspecto de seu socialismo que mais impacto teve no anarquismo foi o federalismo. Recordemos que, mesmo Bakunin, que se reconheceu um discípulo de Proudhon, afirmou que “na crítica implacável que [Marx fez a Proudhon] há, sem dúvida alguma, muita verdade”. (Bakunin, Estatismo e Anarquia)

Terceiro, Kropotkin, que possivelmente foi o anarquista que mais discutiu Spencer, o fez de maneira bastante crítica, e nunca assumiu a posição de seguidor de suas ideias. Kropotkin buscou em Spencer (assim como em Darwin e outros) fundamentos das ciências naturais que pudessem contrapor a filosofia metafísica e, juntamente com a história e a sociologia, subsidiar um entendimento rigoroso da realidade material. Kropotkin identifica em Spencer diversos problemas, dentre os quais sua abordagem metodológica, seu enfoque dos povos originários e, especialmente, sua visão rasa e pessimista de Darwin, que se expressou num darwinismo social deturpado. De acordo com Kropotkin, “a filosofia sintética de Spencer, embora, sem dúvida, represente um enorme avanço” em relação às abordagens metafísicas e religiosas, “ainda contém em sua parte sociológica erros tão grosseiros” quanto em outras de suas obras. (Kropotkin, Ciência Moderna e Anarquismo)

Ainda sobre Kropotkin, Stálin escreve em seu texto que “a doutrina de Kropotkin [...] encerra o futuro socialismo nos limites das cidades e comunas isoladas”. E isso, “contradiz os interesses de uma poderosa ampliação da produção”, que é levada a cabo na “ordem capitalista”. Permanecemos querendo saber onde Stálin leu isso em Kropotkin, pois parece uma informação à qual apenas ele teve acesso... O federalismo, em Kropotkin e para os/as anarquistas em geral, busca evitar tanto o centralismo quanto o autonomismo, e dá conta dos desenvolvimentos da sociedade moderna. (Berthier, Do Federalismo; Dolgoff, A Relevância do Anarquismo para a Sociedade Moderna)

ENFIM, ALGUNS ELEMENTOS PARA O DEBATE

Em conclusão, podemos iniciar dizendo que as palavras que Stálin usou contra os/as anarquistas servem muito bem para ele mesmo. Seu texto sobre o anarquismo é “resultado de incompreensão ou é maledicência indigna”. Aparentemente, ele e aqueles que o reproduzem “estão atacados de um mal: gostam muito de ‘criticar’ os partidos de seus adversários, mas não se dão ao trabalho de conhecer alguma coisa sequer desses partidos”.

A leitura e a compreensão de Stálin sobre o anarquismo é, sem dúvida alguma, muito insuficiente; seu texto, no que diz respeito ao anarquismo, possui pouca materialidade. É evidente que ele não cumpriu o que prometeu: não examinou de maneira rigorosa o anarquismo e muito menos demonstrou sua inconsistência. Entretanto, o texto de Stálin não é apenas uma discussão crítica do anarquismo. Ele também se propõe a apresentar os fundamentos teóricos e estratégicos do marxismo revolucionário.

Ao longo de nosso texto, tentamos mostrar aquilo que nos aproxima e aquilo que nos distancia dessa abordagem que poderíamos chamar “leninista” do marxismo. Procuramos expor, a partir das posições anarquistas: as relações entre o marxismo, de um lado, e o reformismo e o burocratismo revolucionário, de outro; a insuficiência da teoria marxista do Estado e das classes sociais, que leva a equívocos de análise e, em consequência, de estratégia de transformação socialista; que a conquista do Estado nunca leva à socialização dos meios de vida (de produção e troca, de governo e repressão, de comunicação e instrução) e, da maneira como foi promovida pelo marxismo revolucionário do século XX, sempre conduz à ditadura burocrática e à continuidade da dominação dos/as trabalhadores; que muitas das hipóteses estratégicas do marxismo para promover o socialismo e o comunismo foram rejeitadas pela história.

Isso não significa que não reconhecemos no marxismo e em muitos/as marxistas qualidades teóricas e práticas. Certamente elas existem. Nosso argumento é que os caminhos assumidos pelo marxismo no século passado, seja pela via reformista da socialdemocracia ou pela via revolucionária do leninismo, são insuficientes e equivocados para a construção de uma sociedade emancipada. Para nós, é um erro apostar nos caminhos ortodoxos do marxismo; mas, tentar reabilitar o legado de Stálin e do stalinismo, é um absurdo completo.

Ou seja, consideramos que a construção de um projeto socialista para este início de século XXI exige outras referências. E, modestamente, acreditamos que as concepções e a história do anarquismo (incluindo o anarcossindicalismo e o sindicalismo revolucionário) têm ainda muito a dizer nesse sentido.

Precisamos de um projeto diferente de socialismo e de um caminho adequado para sua construção. Um socialismo do século XXI deve ser capaz de promover uma socialização generalizada, atingindo os campos econômico, político e intelectual-moral. Ele precisa ter condições: de promover um poder popular autogestionário, o poder efetivo dos/as trabalhadores/as; de substituir em todos os níveis a dominação pela autogestão, as relações sociais autoritárias por relações libertárias. E necessita, ademais, estar em profundo acordo com os princípios da ecologia social. Isto é, esse socialismo tem que ser libertário/antiautoritário, autogestionário/federalista (democrático) e ecológico.

Os caminhos para chegarmos a esse socialismo precisam garantir sua coerência estratégica, de modo que os meios para a luta e organização devem, obrigatoriamente, apontar para essa sociedade socialista. Em nossa concepção, isso passa por (re)organizar os/as trabalhadores/as em movimentos populares (sindical, comunitário, agrário etc.) e garantir a esses movimentos certas características estratégicas e programáticas, que incluem: perspectiva classista e combativa de luta; independência das classes dominantes e das instituições capitalistas-estatistas e diversas formas de ação direta contra elas; mecanismos de democracia de base que, por meio da autogestão e do federalismo, evitem a burocratização e produzam uma nova cultura política e novos sujeitos revolucionários; condições para romper com a fragmentação e conformar um amplo movimento revolucionário, capaz de elevar crescentemente o nível da luta de classes, até que uma revolução social seja possível e crie as possibilidades para que esse socialismo seja implantado.

Essas posições estão mais detalhadas em um outro documento, intitulado “Nossos Princípios e Estratégia Geral”, que pode ser acessado em nosso site: www.socialismolibertario.net.