De dois em dois anos, os brasileiros são chamados às urnas para eleger membros para os poderes Executivo e Legislativo. Neste momento, nos aproximamos das eleições municipais. As pré-candidaturas e alianças vão se consolidando e tomam grande parte do noticiário e da agenda política, pautando toda a sociedade, inclusive os movimentos sociais.
As campanhas municipais são muito influenciadas pelos processos eleitorais anteriores, tanto em nível nacional como internacional. Mais uma vez nos deparamos com um cenário de polarização entre candidaturas e alianças ligadas à chamada Frente Ampla (defensora das políticas neoliberais, com alguns elementos sociais) sob a máscara do que resta do lulismo, e candidaturas do campo bolsonarista, que congrega diversos setores da direita e da extrema-direita (também defensora das políticas neoliberais). Essa dinâmica se reproduz em praticamente todas as capitais e as grandes cidades, impactando até os menores municípios por meio das regiões metropolitanas e dos feudos políticos nesses locais. Em alguns casos, o jogo de interesses eleitoreiros foge dessa polarização e consegue juntar partidos adversários e inimigos -- em São Luís, por exemplo, a candidatura do PSB formou uma aliança com mais de dez partidos, que vão do PT de Lula ao PL de Bolsonaro.
Luta política não é sinônimo de disputa eleitoral
O senso comum reproduzido na mídia, nas redes sociais e até mesmo entre a maioria da esquerda costuma disseminar nas classes oprimidas a ideia de que política é sinônimo de eleições, e que "fazer política" seria então direcionar energia para construir candidaturas e juntar votos. A maioria dos partidos, tanto à esquerda quanto à direita, têm o processo eleitoral como foco de sua atuação. Se a direita tem como objetivo conservar o status quo, para a esquerda, que em tese deveria defender os direitos e interesses das classes oprimidas, essa ênfase nas eleições se torna mais prejudicial.
Hoje governistas, os maiores partidos de esquerda do país, PT, PCdoB e PSOL, que dirigem inúmeros sindicatos e movimentos, orientam todas as lutas visando o saldo eleitoral, mesmo que para isso seja preciso enfraquecer greves e manifestações. Nos locais onde são oposição, apoiam as lutas para desgastar eleitoralmente os governos, mas cuidando para que não haja possibilidade de radicalização; onde são governo, fazem de tudo para bloquear qualquer tipo de mobilização e manifestação de descontentamento. Em qualquer situação, para as cúpulas desses partidos, a ação direta e a combatividade são contraproducentes para suas candidaturas. Isso é reflexo dos métodos do PT e do lulismo, que fazem uso de uma forte base social para alcançar o aparato estatal, sem buscar mudar as estruturas da sociedade, profundamente violenta e desigual.
Governos a serviço das classes dominantes
De forma geral, as eleições são definidas pelas forças organizadas das classes dominantes, por meio de seus diversos instrumentos, e não pela livre vontade dos sujeitos em seu voto pessoal. Mesmo depois de definida uma eleição, forças muito poderosas impõem suas agendas políticas e econômicas aos "vencedores" do processo eleitoral. Entre essas forças estão as agências internacionais do imperialismo (FMI, OMC etc.), o sistema financeiro internacional e nacional, a burguesia industrial, a grande mídia, as igrejas neopentecostais e as forças conservadoras organizadas em geral. É o que acontece com o governo Lula-Alckmin que, mesmo com a vitória eleitoral, passou a adotar parte do programa de Bolsonaro derrotado nas urnas. O maior exemplo disso é o mecanismo neoliberal do arcabouço fiscal, que obriga o corte de gastos sociais para garantir o pagamento da dívida pública a banqueiros e especuladores. Mesmo com mudanças nos governos, as classes dominantes não são afetadas, e assim o sistema se mantém blindado de uma verdadeira transformação social.
Em nossa concepção, candidatura nenhuma fará mudanças profundas dentro da institucionalidade, já que o Estado não vai emancipar as classes oprimidas, pois ele mesmo é um instrumento de dominação de classe. São a ação direta e a pressão popular das massas trabalhadoras que podem levar a ganhos concretos, além de promover formas de política por fora do Estado. Da mesma forma que acreditamos não ser possível combater o capitalismo transformando trabalhadoras e trabalhadores em patrões, não é viável eleger políticos para combater o Estado.
Partidos revolucionários nas eleições fortalecem ilusão
Além dos grandes partidos de esquerda que concentram energias nas eleições, há os partidos e correntes de esquerda revolucionários, que participam do processo eleitoral com o objetivo de fazer propaganda de seus programas políticos, e assim ganhar novos militantes e apoiadores. Essas organizações têm a consciência de que seus programas radicais têm chances remotas de conquistarem cargos em governos ou parlamentos, mas aproveitam esse espaço para pautar seus programas políticos para a classe trabalhadora. Porém, em nossa avaliação, o que acontece é o contrário do objetivo inicial: as bases que têm confiança nesses partidos acabam mantendo as ilusões eleitorais, à medida que são chamadas a fazer essa disputa. Entre a própria militância desses partidos, a participação eleitoral gera algum nível de confusão e divisão. Já em relação à massa das classes oprimidas, que não têm contato próximo com esses partidos, os programas revolucionários na campanha eleitoral dão a sensação de estarem fora de lugar, o que é verdadeiro, já que não há espaço para propostas mais radicais dentro das vias institucionais. Além disso, essas campanhas contribuem para fortalecer a ilusão de que na democracia burguesa há espaço para a difusão de programas socialistas pela via pacífica e institucional. Na realidade, sempre que um programa socialista se massifica nas classes oprimidas, a democracia burguesa não hesita em recorrer ao fascismo ou à repressão generalizada para contê-lo.
O que essas candidaturas mais radicais não deixam claro à população é que seus programas políticos não são viáveis sem o controle econômico dos meios de produção e distribuição, o que só poderá acontecer com uma revolução social que rompa com o sistema atual de exploração e opressão. E para tal revolução social ocorrer, será necessário um intenso trabalho de organização popular, o que se dá fora das urnas.
Sem a devida clareza, essa participação eleitoral fortalece a ilusão no parlamento burguês, além de gerar desconfiança no setor das classes oprimidas que já não tem esperanças na política institucional. A tática eleitoral leva os partidos revolucionários a uma encruzilhada: se mantiverem seu programa radical, permanecem irrelevantes na disputa institucional, ainda que contribuindo com a ilusão eleitoral. Muitos, então, passam a adaptar sua linha política às exigências da democracia burguesa para tentar emplacar suas candidaturas. Abrandam o discurso, conciliando com setores mais reformistas ou da própria burguesia e, consequentemente, degeneram o programa socialista de sua organização em troca da eleição de alguns candidatos.
Todo Voto é Nulo - e por isso o foco é na luta de classes
Apesar de não defendermos o voto em candidaturas, também não damos centralidade à propaganda de voto nulo. Acreditamos que a campanha por voto nulo é outro método que acaba fortalecendo as ilusões no processo eleitoral. Por um lado, existem informações falsas que podem ser incentivadas acidentalmente, como a crença de que o alto número de votos nulos provocaria a anulação das eleições ou a de que os votos em branco iriam para quem está ganhando. Por outro lado, essa campanha poderia acabar desviando um esforço de práticas mais construtivas, como a mobilização das classes populares para pautas concretas, para uma ação inútil: votar nulo. Além do mais, enfatizar o voto nulo pode prejudicar o diálogo com setores da classe trabalhadora que, infelizmente, ainda acreditam na tática eleitoral. Em nossa experiência, chegamos à conclusão que as campanhas com centralidade no voto nulo mais contribuem para a despolitização do processo do que o contrário.
Voto para combater o avanço da extrema-direita?
Nossa atuação militante visa derrotar o projeto das classes dominantes, e não apenas a extrema-direita. O crescimento das ideias da extrema-direita se dá em meio a décadas de política de conciliação com os inimigos de classe, que borrou as diferenças ideológicas e fez com que setores descontentes com o capitalismo passassem a considerar "esquerda" e "direita" como "farinhas do mesmo saco". Se no discurso a extrema-direita canaliza boa parte da insatisfação popular e se apresenta como alternativa de mudanças radicais, é porque ela é fruto do aprofundamento do neoliberalismo (e sua adoção por parte de setores da centro-esquerda) e da crise do Capital que se acentua, exigindo formas de governo mais agressivas para assegurar a exploração da força de trabalho. Também busca aprofundar opressões como de gênero, de sexualidade, de raça e etnia para fazer valer a dominação sobre as classes oprimidas.
A eleição de governos de esquerda acaba por ser incapaz de conter a extrema-direita, já que o problema é estrutural. É preciso romper com esse ciclo! A extrema-direita só será derrotada quando as classes oprimidas compreenderem que ela não é muito diferente de outros setores na defesa dos interesses das classes dominantes. Mais do que isso, é necessário apresentar um projeto socialista e libertário que paute, com independência de classe e internacionalismo, uma revolução social que possa colocar fim ao capitalismo e ao Estado, e a concepções de mundo que produzem crises e colocam em risco a humanidade e a própria natureza como um todo.
Lutar x votar
Para nós, não há espaço para mediação. O foco nas eleições conduz as lutas e a participação popular nos processos de decisão a uma posição marginal na política. E desloca o protagonismo aos candidatos eleitos, que passam a decidir os futuros dos movimentos e partidos, na grande maioria das vezes atropelando o processo de organização popular e das próprias bases dessas organizações. Como anarquistas, defendemos que é urgente defender a independência de classe nos movimentos sociais e sindicatos, e atuar para que eles não se submetam a interesses de nenhum governo, ou que não sirvam de instrumentos para eleger candidaturas. Uma atuação política que sirva ao povo de fato deve ter como centralidade a defesa dos interesses das classes oprimidas.
Compreendemos que a construção do socialismo, de forma verdadeiramente emancipadora e autogestionária, deve se dar com o acúmulo de força social das classes oprimidas em um projeto revolucionário, internacionalista, e comprometido com o combate a todo tipo de opressão. A história do socialismo demonstra que jamais houve um processo de transformação radical feito através das urnas. Em todos os processos revolucionários, o decisivo foi a ação das massas, organizadas em movimentos populares e sindicatos revolucionários. Quando não, os governos populares eleitos atuaram como um freio ao processo revolucionário, e até mesmo frearam reformas pontuais. Cabe reafirmar também que nunca houve na história do parlamento brasileiro uma maioria de esquerda -- o parlamento brasileiro sempre foi conservador. Portanto, aqueles que insistem que socialistas devem lutar para conseguir uma maioria de esquerda no parlamento, podem ser considerados como utópicos, idealistas, que se negam a ver a realidade material e histórica sob seus pés. As eleições na democracia burguesa não contribuem para transformar o sistema que segue privilegiando as classes dominantes, pelo contrário, acabam fortalecendo esse sistema da exploração e opressão.
A polícia segue matando e executando nas favelas e periferias, a burguesia brasileira e os bancos seguem superexplorando trabalhadoras e trabalhadores, o ecocídio, a devastação ambiental e o ataque aos povos originários e camponeses prosseguem, independentemente da agenda eleitoral. O núcleo estrutural do sistema de dominação não foi modificado, apenas teve alguns de seus elementos atenuados, em troca da desarticulação da capacidade de organização das classes oprimidas, que passam a confiar nas instituições burguesas.
De nossa parte, seguiremos concentrando esforços na construção cotidiana de movimentos populares fortes, que possam fazer a luta direta pela melhoria de suas condições de vida. Só assim é possível obter conquistas concretas, que possam avançar para uma verdadeira perspectiva de transformação social, sem sustentar ilusões com a farsa eleitoral.
Organização Socialista Libertária
Agosto de 2024