Há 61 anos, em 1º de abril de 1964 (ironicamente no Dia da Mentira), setores reacionários das Forças Armadas, com apoio da burguesia nacional e do imperialismo estadunidense, consumaram um golpe que interrompeu a frágil democracia representativa brasileira. O objetivo era claro: sufocar as mobilizações populares por reformas sociais, manter os privilégios das classes dominantes e aprofundar a exploração capitalista. Seis décadas depois, a herança maldita do golpe ainda assombra o país. Na última semana, o Supremo Tribunal Federal (STF) tornou réus o ex-presidente Jair Bolsonaro e sete ex-integrantes de seu governo (sendo cinco militares) pela tentativa de golpe planejada desde 2022, que culminou no 8 de janeiro de 2023.
Raízes históricas: militares, classes dominantes e o controle do Estado
A relação entre as altas patentes militares e as classes dominantes no Brasil é antiga. Em 1889, setores das Forças Armadas derrubaram Dom Pedro II para instaurar a República, não por um projeto popular, mas, entre outros motivos, para preservar os privilégios das elites agrárias, que queriam se vingar do regime que aboliu a escravatura sem indenizar os proprietários de terras. Ao longo do século 20, houve insurgências pontuais dentro das casernas, como a Revolta da Chibata (1910) e a Coluna Prestes (1924-1927), que contestavam hierarquias e desigualdades. A história das Forças Armadas brasileiras, porém, é de colaboração com o golpismo. Protagonizaram o golpe de 1930 (que instituiu Getúlio Vargas), apoiaram o autogolpe de 1937 (que deu início ao Estado Novo), derrubaram Getúlio, em 1945, e tentaram um golpe na década seguinte. Após uma nova tentativa frustrada, em 1961, o golpe de 1964 alinhou definitivamente as Forças Armadas à direita, expurgando quaisquer tendências progressistas em seu interior: mais de 6,5 mil militares democratas e/ou socialistas foram perseguidos, torturados, mortos ou expulsos da Marinha, Exército e Força Aérea Brasileira. A disciplina militar passou a servir ao terror de Estado.
O golpe de 1964 e a ditadura: terrorismo de Estado e resistência
O golpe foi gestado anos antes em casernas militares, gabinetes empresariais e instituições como o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes) e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad), que financiaram políticos e campanhas como a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, para insuflar setores mais conservadores da população. Os militares derrubaram o presidente João Goulart, um trabalhista que nada tinha de radical, mas que pretendia implantar reformas para modernizar o país e manter uma política externa independente dos EUA, no contexto da Guerra Fria.
Com o regime militar instituído, a repressão foi oficializada com os Atos Institucionais, especialmente o AI-5, de 1968, que fechou o Congresso, censurou a imprensa e as artes, e legalizou a tortura como política de Estado. O regime instaurado reprimiu, prendeu, torturou e assassinou oponentes políticos. Podemos destacar o desaparecimento do ex-deputado federal Rubens Paiva, em 1971, e a tortura e perseguição de sua mulher, Eunice Paiva, como retratado no filme "Ainda Estou Aqui", e também a tortura e morte do jornalista Vladimir Herzog, então diretor da TV Cultura, por suspeita de envolvimento com o PCB, partido colocado na ilegalidade, entre diversos outros casos, incluindo tortura de mulheres grávidas e de bebês. Anarquistas também foram alvo da repressão, a exemplo do fechamento do Centro de Estudos Professor José Oiticica (CEPJO), no Rio de Janeiro, e do Centro de Cultura Social de São Paulo (CCS), além da prisão de militantes do Movimento Estudantil Libertário (MEL).
Organizações de luta do povo negro, movimentos comunitários, associações de bairro e de favelas foram vigiados e perseguidos. Em um período de lutas por liberdades sexuais, gays, lésbicas, travestis e outras minorias foram reprimidos e criminalizados. Ao menos 8.350 indígenas foram massacrados em ações apoiadas pelo regime. A ditadura também matou sindicalistas e camponeses, e estimulou os chamados "esquadrões da morte", que espalharam terror nas periferias das grandes cidades. Na vala clandestina de Perus, em São Paulo, foram encontradas mais de 1 mil ossadas de pessoas executadas por forças de segurança. Até hoje, a grande maioria dessas vítimas não foi sequer identificada.
A estrutura agrária concentradora, herança colonial, foi consolidada como legado da ditadura. O chamado "milagre econômico" fez crescer o PIB do país entre 1968 e 1973, às custas do arrocho dos salários. A classe trabalhadora perdeu poder de compra, e a pobreza aumentou. Depois desse período, com a crise internacional do petróleo, o país entrou em um período de recessão, fazendo aumentar o desemprego e a concentração de renda. Apesar da tentativa de resistência das guerrilhas inspiradas nas revoluções Cubana e Chinesa, greves em fábricas e mobilização estudantil, a repressão desarticulou as lutas com brutalidade. Aos poucos foi sendo reconstruído o movimento social no campo, nos sindicatos, nas universidades, nas periferias e em outros espaços, conformando novas organizações na busca pela redemocratização.
A anistia inacabada e o legado da impunidade
Promulgada em 1979 após intensa mobilização social, como a campanha “Anistia Ampla, Geral e Irrestrita”, a Lei da Anistia cumpriu parcialmente seu propósito. Ela permitiu o retorno de exilados políticos, mas também protegeu torturadores da responsabilização. Em meio à retomada da democracia burguesa, buscou-se um apaziguamento, empurrando para debaixo do tapete as barbaridades cometidas pelos militares. Poupadas de qualquer compromisso durante a redemocratização, as Forças Armadas se mantiveram como instituições profundamente autoritárias e influentes sobre o aparato estatal. Embora a tardia Comissão Nacional da Verdade (2012-2014) tenha elucidado violações de direitos humanos durante a ditadura, isso não resultou em mecanismos concretos de responsabilização, deixando intacto o pacto de impunidade. Esse cenário acabou permitindo a eleição à presidência de Jair Bolsonaro, um produto desse pacto, formado na década de 1980 na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), e que durante toda sua trajetória política defendeu os crimes da ditadura. Os planos golpistas de 2022 mostram que havia uma intenção de mantê-lo no poder, mesmo com a derrota eleitoral, e sufocar quem se colocasse no caminho.
O Partido dos Trabalhadores (PT), gestado nas lutas pela reabertura democrática, assume uma postura paradoxal ao chegar à presidência: não apenas falhou em buscar a punição aos torturadores, como também diluiu pautas simbólicas, como a preservação da memória das vítimas do regime militar. Atualmente, sob a gestão Lula-Alckmin, a estratégia de conciliação de classes aprofundou-se ainda mais em troca de governabilidade: aceita-se a tutela militar e negligencia-se a revisão crítica do passado, buscando uma narrativa de “superação” que evita confrontar estruturas de poder. Na prática, essa postura normaliza a violência de Estado como instrumento para manter uma suposta ordem política e institucional. Os massacres promovidos pelas PMs estaduais, sob a conivência dos governos petistas, são exemplos dessa "democracia das chacinas", nos termos usados por familiares de mortos pelas polícias.
Ditadura Nunca Mais! Pela punição dos golpistas de ontem e de hoje!
Os 61 anos do golpe militar nos lembram que uma sociedade igualitária não se constrói com o esquecimento. A impunidade de torturadores e a recusa do Estado em reconhecer e reparar suas violências mantêm vivos os legados autoritários da ditadura, que se perpetuam nas políticas de segurança, na brutalidade policial, nas práticas de pistolagem promovidas por latifundiários contra indígenas e camponeses e na criminalização de movimentos sociais. Passados 40 anos da redemocratização, o Brasil segue sendo um país de profundas contradições, com um abismo social que mantém milhões na pobreza, sujeitos a violências de todos os tipos. Nenhuma sociedade se liberta da opressão sem enfrentar seu passado. Como demonstra a experiência latino-americana, silenciar os crimes da ditadura em nome da "pacificação" apenas fortalece estruturas de poder autoritárias.
A verdadeira democracia não se resume a eleições e instituições capturadas pelo poder econômico e estatal, onde imperam a conciliação de classes e o apagamento da história de resistência e luta das classes oprimidas. Ela se constrói na independência de classe e na luta organizada das classes oprimidas. A memória dos que tombaram e dos que sobreviveram à ditadura nos faz recordar que apenas a mobilização popular pode impedir que o autoritarismo se reinstale, e construir um futuro socialista e libertário.
Para que não se esqueça. Para que nunca mais aconteça!
Organização Socialista Libertária
Abril de 2025