MANIFESTO DE FUNDAÇÃO


Organização Socialista Libertária (OSL)

 

 

 

O anarquismo não é uma bela fantasia retirada da

imaginação de um filósofo, mas um movimento social das

massas trabalhadoras. Por isso mesmo, deve reunir suas

forças em uma organização geral que atue constantemente,

segundo as exigências da realidade e da estratégia

da luta social de classes.

Dielo Truda

 

Uma prática política eficaz exige, portanto, o conhecimento

da realidade (teoria), a postulação harmônica com ela

de valores objetivos de transformação (ideologia) e meios

políticos concretos para conquistá-la (prática política).

Os três elementos se fundem em uma unidade dialética

que constitui um esforço pela transformação

social que o partido postula.

Federação Anarquista Uruguaia

 

 

Como resultado da primeira sessão de nosso Congresso, ocorrida em julho de 2023 na cidade de São Paulo, declaramos fundada a Organização Socialista Libertária (OSL). 

A OSL é uma organização anarquista brasileira criada pelo conjunto dos núcleos que compunham a Federação Anarquista do Rio de Janeiro (FARJ, estado do Rio de Janeiro), a Organização Anarquista Socialismo Libertário (OASL, estado de São Paulo), a Rusga Libertária (RL, estado do Mato Grosso), o Coletivo Mineiro Popular Anarquista (COMPA, estado de Minas Gerais), além de indivíduos de outras localidades do Brasil. Ela pretende ser uma organização de abrangência nacional e, por isso, fomentar novos núcleos pelo Brasil.

A escolha desse nome é uma homenagem àquela que foi a primeira organização nacional do anarquismo especifista brasileiro: a antiga OSL, que atuou entre 1997 e 2000, e cujo nome foi posteriormente utilizado pela militância paulista dessa mesma corrente, num processo encerrado há mais de 15 anos. Há militantes na atual OSL que fizeram parte dessas duas iniciativas anteriores.

Neste Manifesto, apresentamos nossas referências e origens, e também, de maneira resumida, nossos princípios e concepções.

 

NOSSAS REFERÊNCIAS POLÍTICAS E IDEOLÓGICAS

Quando dizemos que somos uma organização anarquista, temos uma noção bem precisa sobre o que é o anarquismo, baseada numa análise de sua história global dos últimos 150 anos.

O anarquismo é uma ideologia ou doutrina política, uma forma libertária, antiautoritária e revolucionária de socialismo, que pretende mobilizar as classes oprimidas – assalariados/as das cidades e dos campos, camponeses/as, povos tradicionais e marginalizados/as –, por meio de certa estratégia, para realizar uma revolução social que estabeleça uma nova sociedade fundamentada no socialismo, na autogestão, no federalismo, na igualdade e na liberdade.

Apoiado em uma concepção ética, o anarquismo parte de uma crítica social a todas as formas de dominação – econômicas, políticas, intelectuais-morais e, portanto, de classe, mas também de gênero, de raça, de etnia, de nacionalidade etc. Possui como fim essa sociedade socialista, autogestionária, federalista, igualitária e libertária – em que não há mais classes e dominação, em que a propriedade é coletivizada, o próprio povo governa a si mesmo, e uma cultura concordante serve de alicerce para todo esse projeto de socialização generalizada. 

Os meios condizentes para atingir esse fim implicam a constituição de uma força social classista e combativa, que tem por base esse conjunto de sujeitos oprimidos, e que pode intervir na luta de classes por meio de processos que envolvem: participação crescente da militância, construção pela base, estímulo à luta consciente e ao engajamento voluntário, independência dos inimigos de classe e suas estruturas. [OSL, “Definindo o anarquismo”]

O anarquismo não surgiu de reflexões puramente filosóficas e intelectuais, mas como expressão ideológica e doutrinária (ação e pensamento, prática e teoria) de um setor de trabalhadores/as e movimentos populares engajados na luta de classes do século XIX. Ele se consolidou com a fundação da Aliança, primeira organização política anarquista da história, que, por meio de instâncias secretas e públicas, atuou e influenciou decisivamente a Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT ou “Primeira Internacional”, 1864-1877).

A Aliança teve como principal militante Mikhail Bakunin (1814-1876), cujas posições podem ser compreendidas como uma radicalização do socialismo federalista de Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865). Participando desses movimentos e lutas populares, Bakunin e outros aliancistas – como James Guillaume (1844-1916), Adhémar Schwitzguébel (1844-1895) e Giuseppe Fanelli (1827-1877) –, contribuíram determinantemente para conformação do anarquismo, tanto em termos teóricos quanto práticos.

Ao longo dos anos 1870 e das décadas seguintes, as posições anarquistas se difundiram para os cinco continentes do mundo. Foram importantes para essa difusão, tanto a influência de seus dois maiores clássicos, Mikhail Bakunin e Piotr Kropotkin (1842-1921), quanto de suas experiências sindicalistas revolucionárias, que inspiraram a criação, o fortalecimento e a radicalização de sindicatos e movimentos sociais.

A relevante participação de anarquistas em movimentos populares ocorreu em diferentes países, tais como: Rússia, Ucrânia, Espanha, Bulgária, Estados Unidos, Portugal, França, Itália, Alemanha, África do Sul, Egito, China, Japão, Coréia e Austrália. Ela se deu, também, em quase todos os países da América Latina: Brasil, Argentina, Uruguai, Chile, Peru, Bolívia, Nicarágua, México, Costa Rica, Equador, Colômbia e Cuba.

Historicamente, o anarquismo vem se mantendo no tempo em diversas localidades do mundo, em momentos mais e menos vigorosos, entre fluxos e refluxos, sem, no entanto, jamais ter desaparecido. Essa ideologia ou doutrina tem constituído parte destacada de sindicatos e movimentos sociais, e os influenciando significativamente. [Corrêa, Bandeira Negra]

Entretanto, não é suficiente dizer que nossa organização é anarquista. Porque, ao longo dessa sua longa história, o anarquismo conviveu internamente com muitos debates e divergências, que, inclusive, estabeleceram suas grandes correntes: o anarquismo de massas e o anarquismo insurrecionalista.

Em termos mais amplos, nos filiamos à corrente histórica do anarquismo de massas, que teve como sua principal estratégia o sindicalismo revolucionário. Essa filiação se explica, na medida em que: defendemos a organização (dualismo organizacional) em oposição às posições antiorganizacionistas, contrárias à organização e que reivindicam a atuação individual ou em pequenos grupos informais; defendemos o possibilismo (lutas por reformas dentro de certos marcos estratégicos como caminho para a revolução) em oposição às posições antipossibilistas, que afirmam que as lutas por reformas só reforçam a sociedade capitalista; defendemos a necessidade de violência (povo em armas, insurreições, luta avançada etc.) vinculada e concomitante aos movimentos de massas, em oposição às posições que veem a violência como gatilho (propaganda pelo fato), reivindicando que atos isolados e restritos de violência podem produzir movimentos massivos e revolucionários.

Em termos mais específicos, devido a essa nossa perspectiva organizativa, nos filiamos ao dualismo organizacional, ou seja, a expressão histórica do anarquismo em que militantes e organizações reivindicaram a necessidade de uma organização simultânea em nível político-anarquista (organização política ou partido) e em nível social-popular (organização popular de massas). Tal expressão teve eco em diferentes partes do globo, incluindo o sul-global, fomentando a criação de organizações anarquistas como o Partido Liberal Mexicano (em 1906, no México), a Sociedade de Companheiros Anarcocomunistas (em 1914, na China), a Federação Anarcocomunista da Bulgária (em 1919, na Bulgária), o Partido Comunista [Libertário] (em 1919, no Brasil) e a Federação Anarcocomunista Argentina (em 1935, na Argentina).

No dualismo organizacional, nossas principais referências históricas estão entre a militância que defendeu formas homogêneas e programáticas de organização anarquista (especialmente o plataformismo e o especifismo), em contraposição às formas heterogêneas e flexíveis (como no caso do sintetismo).

Referências centrais para nós são: Bakunin, suas reflexões sobre o dualismo organizacional, a experiência da Aliança de 1868 em diante, em especial sua atuação na Internacional; Errico Malatesta (1853-1932), suas reflexões sobre a organização anarquista (chamada por ele de “partido anarquista”), sobre a participação anarquista organizada em movimentos sindicais, antifascistas ou insurrecionais, além das experiências que construiu: Partido Revolucionário Socialista Anarquista (1891); Partido Anarquista de Ancona (1913); União (Comunista) Anarquista Italiana (1919/20).

Também é referência central para nossa organização o Grupo de Anarquistas Russos no Estrangeiro – do qual participaram Nestor Makhno (1888-1934), Piotr Arshinov (1887-1937), Ida Mett (1901-1973), Jean Walecki (1905-?) e Maxime Ranko (1905-1952) –, que editou a revista Dielo Truda e, em 1926, publicou a “Plataforma Organizacional da União Geral dos Anarquistas”.

Reivindicamos o plataformismo, em especial algumas de suas expressões, como a Federação dos Anarcocomunistas da Bulgária (FAKB), ativa entre os anos 1920 e 1940 na Europa Oriental, e o “Manifesto Comunista Libertário”, redigido em 1953 por Georges Fontenis, na França. Reivindicamos, da mesma maneira, o especifismo latino-americano dos anos 1960 e 1970: no Uruguai, com a experiência da Federação Anarquista Uruguaia (FAU); na Argentina, com a experiência da organização Resistência Libertária (RL).

 

NOSSA TRAJETÓRIA NO BRASIL E ALGUNS INDICATIVOS

No Brasil, a trajetória de nossa militância remonta ao processo de abertura política posterior à ditadura militar. Naquele contexto, o anarquismo se reorganizava, e alguns de nossos militantes mais antigos fizeram parte desse processo, ainda nos anos 1980 e 1990, especialmente no Rio de Janeiro e, depois, no Rio Grande do Sul e em São Paulo.

Além de muitas atividades no campo popular (comunitário, estudantil e sindical), tais militantes contribuíram com diferentes iniciativas do campo anarquista. Dentre outras, mencionamos: no Rio de Janeiro, o Círculo de Estudos Libertários (CEL, 1985-1991), e seu sucessor, o Círculo de Estudos Libertários Ideal Peres (CELIP, 1995-presente) e o boletim/jornal Libera (de 1991 em diante) – periódico anarquista de maior duração ininterrupta em toda a história do Brasil.

Essa militância mais antiga esteve diretamente envolvida nos primeiros contatos com a Federação Anarquista Uruguaia (FAU), nas articulações entre a FAU e o anarquismo brasileiro (em meados dos anos 1990), na conformação da Construção Anarquista Brasileira (1995) e na redação do documento “Luta e Organização” (1996) – processo que fundou o anarquismo especifista no Brasil.

Ela contribuiu com a construção da Organização Socialista Libertária (1997-2000), a mencionada organização nacional pioneira do anarquismo especifista brasileiro, e da tendência Resistência Popular em diferentes estados (de 1999 em diante); participou da fundação e das lutas da Federação Anarquista Gaúcha (FAG, de 1995 em diante), da Federação Anarquista do Rio de Janeiro (FARJ, de 2003 em diante) e do Fórum do Anarquismo Organizado (FAO, de 2002 em diante).

Essa militância também compôs organizações anarquistas de São Paulo (Luta Libertária, Organização Socialista Libertária) e do Mato Grosso (Rusga Libertária); construiu a rede de apoio da FARJ – que ajudou as articulações em vários estados e a fundação ou refundação de organizações em São Paulo, no Ceará, em Santa Catarina e no Paraná (entre 2008 e 2011); coordenou a aproximação e o ingresso dessa rede no FAO (entre 2009 e 2011); participou do FAO e da preparação da fundação da Coordenação Anarquista Brasileira (CAB, 2012). [OASL/FARJ, “Elementos para uma Reconstituição Histórica de Nossa Corrente”]

Entre 2012 e 2022, a militância que hoje faz parte da OSL compôs diferentes organizações estaduais da CAB, colaborou com o desenvolvimento dessas organizações e da própria CAB.

Ainda que todas essas iniciativas das últimas décadas tenham sido obra de um conjunto muito maior de militantes, podemos dizer sem medo que tivemos relevância expressiva em todas elas. De modo que, modestamente, nos orgulhamos de ter contribuído, no Brasil, com os acertos e os erros da implantação, do crescimento e do desenvolvimento do anarquismo em geral, e do anarquismo especifista em particular.

Na OSL, já estamos trabalhando para impulsionar quatro objetivos que, em nossa visão, foram basilares para a construção de nossa corrente anarquista no Brasil:

Primeiro, expandir a atuação para além do campo cultural e investir, principalmente, na construção e na participação regular e permanente de/em movimentos populares (sindicais, comunitários, estudantis, agrários, camponeses, indígenas e outros), buscando influenciar as lutas sociais de massas por dentro, com um programa claro e definido. Intervir na realidade social brasileira e ter um papel na conformação de uma esquerda, construída desde os movimentos e não dos partidos tradicionais (em especial o Partido dos Trabalhadores e seus satélites), por meio de uma perspectiva de base, classista, combativa, de ação direta, independente, autogestionária, federalista e revolucionária.

Segundo, conformar uma força política real, que não só contribua com as lutas das classes oprimidas, mas que seja reconhecida por outras forças políticas e nos movimentos populares, que possa desenvolver políticas de alianças e atrair trabalhadores/as para a luta. De algum modo, trabalhar para devolver o anarquismo à sua histórica posição de ferramenta ativa de intervenção nas lutas de trabalhadores/as, e para construir um projeto revolucionário de poder popular capaz de transformar a sociedade brasileira.

Terceiro, romper com o principismo (purismo que impede de atuar na realidade como ela de fato é, e, assim, articular adequadamente princípios e prática política) e a iconoclastia (foco em chocar esteticamente a sociedade, e não em transformá-la) e, assim, reconhecer que certamente a realidade tem muitíssimos problemas, mas é com ela que devemos lidar concretamente. Nossos princípios precisam guiar nossa atuação, mas temos que saber nos mover politicamente nessa realidade concreta e material (que não é um mundo idealizado). É fundamental deixar de lado o anarquismo que se restringe ao “estilo de vida” e atuar como “peixe dentro d’água” entre trabalhadores/as, ou seja, como trabalhadores/as e entre trabalhadores/as.

Quarto, abandonar definitivamente o sintetismo, em favor de uma posição organizativa homogênea e programática, com unidade teórica, ideológica, prática, com responsabilidade e disciplina coletiva. Para isso, é fundamental se separar dos individualistas e ter como foco trabalhadores/as com outro perfil militante. Pretendemos construir um perfil de compromisso com a luta e as demandas coletivas, e evitar a proximidade com ideias e práticas que, muitas vezes, se aproximam do liberalismo, ainda que se chamando de anarquistas.

Ao mesmo tempo, incorporamos em nossa organização cinco indicativos que, para nós, sintetizam os aprendizados desses quase 30 anos de atuação do anarquismo especifista no Brasil.

Primeiro, desde nossa criação conseguimos avançar a acumular, mesmo que entre fluxos e refluxos, ainda que tenhamos que ter em mente que nosso projeto é de longo prazo. Avançar realmente exige acúmulo, olhar no tempo e ver que a estratégia está avançando. Exige também maturidade, tanto individual quanto coletiva. Os acúmulos coletivos devem ser respeitados, assim como a militância que carrega esse acúmulo.

Segundo, não se constrói unidade com desrespeito aos acúmulos coletivos; não se constrói unidade com autonomismo regional/estadual e com particularismo exagerado na prática, nem com negligência e pluralismo incoerente na teoria. É fundamental construir uma cultura política e organizacional que não seja aquela do conflito, da desconfiança, do desrespeito, das acusações, das ameaças de racha/desligamento implícitas e do disputismo desnecessários, mas que, ao mesmo tempo, não estimule a permissividade, que aceita as incoerências, os problemas e as posturas antiéticas. Devemos estimular a liberdade de pensamento, o respeito às posições minoritárias e que a educação preceda a punição.

Terceiro, só se faz uma organização política nacional pensando nacionalmente e em unidade, e essa organização só tem condições de promover um projeto nacional se conseguir crescer e se diversificar nas regiões e nos estados. Isso exige a superação da cultura dos pequenos grupos de afinidade pessoal e a promoção de uma cultura política e organizacional que busque permanentemente a unidade teórica e estratégica, fundamentada na autogestão de base e nos mecanismos federalistas, que constroem o todo a partir das partes. As partes não podem ser autônomas entre si e alienadas da construção do todo; e essa construção do todo deve ser feita de baixo para cima.

Quarto, crescer e se diversificar nacionalmente exige a criação de condições para isso. Exige processo de ingresso adequado, sem militantes que entram e saem, e a lógica dos círculos concêntricos, permitindo que militantes em distintas condições possam permanecer. Exige, também, acompanhamento e formação política adequados. É fundamental ter capacidade de transmitir acúmulos práticos e debates históricos para novos/as militantes, e não negligenciar a formação e a orientação prática. Não devemos nos orientar apenas pela busca de um crescimento numérico apressado, sem organicidade.

Quinto, não se avança num projeto nacional sem balanço crítico do passado e linha para o presente e o futuro. Não se constrói poder popular sem trabalho e inserção social – lutas de massas e influência anarquistas nessas lutas –, nem sem análise concreta da realidade e aplicação da teoria na prática. A boa prática exige boa teoria, e a boa teoria exige boa prática. Isso porque prática e teoria são indissociáveis. Quem desdenha da prática não muda nada no mundo. Quem desdenha da teoria faz sem saber o que faz, e constantemente é usado em projetos alheios sem nem perceber.

 

NOSSOS PRINCÍPIOS: BREVE RESUMO

A OSL baseia-se em um conjunto de princípios – concepções inegociáveis que orientam permanentemente nossa prática política –, que expressam nossas concepções filosóficas, teóricas, estratégicas, programáticas e organizativas.

Esses princípios e concepções estão aprofundados no documento “Nossos Princípios e Estratégia Geral: concepções filosóficas, teóricas, estratégicas, programáticas e organizativas”. Este documento pode ser lido por quem quiser conhecer melhor nossas posições. [Ler este documento]

 

Materialismo/Realismo libertário e teoria social libertária

Em termos de abordagem teórico-metodológica para a análise da realidade social, adotamos o que estamos chamando de materialismo ou realismo libertário e de teoria social libertária, elaborados principalmente a partir de clássicos anarquistas. Essa abordagem se diferencia dos pressupostos analíticos marxistas, pós-modernos, (neo)positivistas e, obviamente, liberais; ela não é sinônimo de determinismo econômico e nem recomenda qualquer pragmatismo da realpolitik, que implique o abandono de nossos princípios e de nossa identidade política.

Em resumo, o materialismo/realismo libertário é um método de análise que é, ao mesmo tempo, naturalista, realista, experimental, compreensivo e crítico. A teoria social libertária é uma aplicação concreta desse materialismo libertário para a análise da sociedade. Essa teoria, como conjunto articulado de instrumentos conceituais científicos para compreensão da realidade, vincula-se com a ideologia ou doutrina anarquista e possui enfoque estrutural/sistêmico, subsidiando as análises das forças em jogo (conflitos sociais), das relações de poder/dominação e dos cenários em que se dão esses conflitos.

Essa abordagem concilia teoria e história, estrutura social e ação humana, reprodução e transformação social. Propõe distinguir, na medida da necessidade, os fatos das ideias, os elementos concretos dos abstratos; estrutura, conjuntura, ação e pensamento/discurso, priorizando os primeiros frente aos últimos, conforme sua profundidade e influência na realidade social.   

 

Concepção de sistema capitalista-estatista

Usufruindo dessa abordagem, concebemos a sociedade contemporânea como sistema capitalista-estatista, um modo de poder/dominação histórico que pode desmembrado analiticamente em três campos indissociáveis e interdependentes: econômico, político e intelectual-moral (cultural).

Sua lógica estrutural se baseia na acumulação permanente de capital econômico, político e intelectual-moral; sua formação social é produto da luta de classes (sendo que as classes sociais não se restringem ao campo econômico e às relações de exploração), das mudanças e transformações conjunturais e estruturais. O capitalismo-estatismo destrói o meio ambiente e os recursos naturais; além disso, incorpora e modifica três outras formas de dominação estruturais: o colonialismo/imperialismo, o racismo e o patriarcado, que são estruturalmente relevantes em sua reprodução.

 

Transformação revolucionária e socialismo libertário

Sustentamos uma prática política que culmine numa revolução social, abolindo a sociedade de classes, a propriedade (privada e nacional/estatal) dos meios econômicos, políticos e intelectuais/morais, o imperialismo, o racismo e o patriarcado. Após um período de transição – já sem capitalismo, Estado e suas instituições legitimadoras –, defendemos que se estabeleça o socialismo ou comunismo libertário, nosso objetivo finalista, um modo ou sistema de poder que não se baseia na dominação.

Será uma sociedade ecológica, pautada na igualdade, na liberdade e na democracia autogestionária/federalista. Uma sociedade marcada pela socialização da propriedade dos meios econômicos (de produção/distribuição), políticos (de administração e controle) e intelectuais-morais (de produção e difusão do conhecimento e das crenças); em que as decisões serão tomadas pelos/as próprios/as trabalhadores/as em seus conselhos e associações, proporcionalmente ao quanto forem afetados/as pelas decisões.

 

Projeto de poder popular autogestionário

Defendemos como caminho para essa transformação, a construção de um poder popular autogestionário, fundamento de nossa estratégia geral de transformação. Para isso, é necessário transformar a capacidade de realização das classes oprimidas em força social. O caminho mais adequado para isso é organizar e engajar o proletariado, o campesinato e as demais classes oprimidas em movimentos populares (sindicatos e movimentos sociais) e, junto a isso, dar um direcionamento estratégico e programático a esses movimentos.

Ao criar, fortalecer e participar desses movimentos, temos que defender certas características e maneiras de promover as lutas, o que envolve: a amplitude e a massificação desses movimentos; suas bases e perspectivas classistas e combativas; sua independência de classe e sua política de ação direta; seus métodos organizativos e decisórios pautados na autogestão e no federalismo; a construção de uma perspectiva transformadora e revolucionária, por meio das lutas por reformas e conquistas imediatas; a unificação das classes oprimidas, cruzando o combate baseado em classe, com as questões ambientais, de nacionalidade, de raça-etnia e de gênero-sexualidade. 

 

Papel da organização anarquista

Nessa estratégia geral, o papel da organização política ou partido anarquista é central, pois incide sobre as massas trabalhadoras (classes oprimidas). Ela faz isso mobilizando, organizando e engajando trabalhadores/as em movimentos populares, potencializando e acelerando a conversão de sua capacidade de realização em força social. Faz isso, também, incidindo nos movimentos populares e promovendo um direcionamento estratégico e programático (nosso projeto de poder popular autogestionário).

A organização anarquista potencializa a força social dos anarquistas em sua ação, e busca influenciar os sindicatos e movimentos sociais; levando isso adiante, enfrenta algumas de suas tendências, assim como inimigos e adversários. Ela promove a necessidade da revolução social e do socialismo libertário, buscando fazer dos movimentos e das massas os grandes protagonistas desse processo; descarta os métodos vanguardistas, pois considera que a relação entre anarquistas/partido e movimentos/massas deve ser complementar, interdependente e pautada na autogestão (antiautoritária e não hierárquica, portanto); recusa as perspectivas “basistas” e o papel de retaguarda.

 

Concepção de organização anarquista

Reivindicamos uma concepção de organização anarquista: o dualismo organizacional – anarquistas se organizando, ao mesmo tempo, como trabalhadores/as, nos movimentos populares, e como anarquistas, na organização política específica. Isso significa sustentar a diferenciação entre o nível social (de massas) e o nível político (de quadros, anarquista), e a relação antes descrita entre ambos. No nível social, nossa proposta se aproxima das formas históricas do sindicalismo revolucionário; no nível político, ela possui referência nas formas históricas de organizações homogêneas e programáticas: o plataformismo e o especifismo.

Somos uma organização anarquista de quadros (minoria ativa), que expressa, articula, organiza e coordena posições ideológicas e doutrinárias (anarquistas) de um setor das classes oprimidas. E que opera em torno de quatro princípios organizativos: 1.) Autogestão/Federalismo: decisões de baixo para cima; delegações controladas pela base, rotativas e revogáveis; círculos concêntricos, consenso/voto; 2.) Unidade teórica e ideológica: linha política clara e unitária, defendida e promovida por toda a militância; 3.) Unidade estratégica e tática: linha programática (estratégica e tática) clara e unitária, defendida e promovida por toda a militância; 4.) Responsabilidade coletiva: cada militante é responsável pela organização e a organização é responsável por cada militante.

 

NOSSA MILITÂNCIA

Temos estimulado um certo perfil de militância, tanto para quem faz parte da organização, quanto para quem pretende ingressar. São militantes (antes de tudo, trabalhadores/as como outros/as, que não precisam se dedicar a estudos aprofundados do anarquismo ou serem intelectuais), que possuem condições e interesse na militância anarquista organizada, e que têm disposição para participar cotidianamente da luta anarquista, com trabalho organizativo interno e trabalho social em movimentos populares. Em geral, ingressamos pessoas que já participam de sindicatos, movimentos sociais e lutas diversas, mas também quem tem interesse em iniciar trabalhos desse tipo.

Nossa militância possui acordo com os princípios e concepções da organização; ela desenvolve e segue um estilo militante e um método de trabalho coletivo. Isso exige adotar certas posturas e descartar outras. Dentre as posturas a serem adotadas estão: estímulo à organicidade, à unidade e à autodisciplina; foco no trabalho construtivo (incidir na realidade e não ficar apenas criticando ou se autodiscutindo); prática de trabalho coletivo; engajamento racional nos debates; desenvolvimento da capacidade de crítica (respeitosa e construtiva), autocrítica e de aprendizado constante; manutenção de relações éticas, de confiança e respeito; promoção de relações saudáveis entre a militância e nos espaços de trabalho.

Dentre as posturas a serem descartadas estão: informalidade, autonomismo, individualismo e falta de responsabilidade; debates baseados em subjetivismo, críticas desrespeitosas ou destrutivas; disputas morais/moralistas; promoção de clima de permanente conflito; arrogância, prepotência e autoproclamação; condescendência com condutas antiéticas; “linchamentos” e julgamentos fora de nossos critérios libertários; vigilância permanente da vida privada da militância.

 

Ética, compromisso, liberdade!

Lutar, criar, poder popular!

Pelo avanço do anarquismo organizado no Brasil!


Organização Socialista Libertária (OSL)

Julho de 2023